Dia Mundial da Água: mudanças climáticas deixam atingidos entre inundações de lama tóxica e fortes estiagens

Em períodos de extremos meteorológicos, atingidos por barragens são ‘revitimizados’ por inundações com rejeitos de minério e transbordamento em hidrelétricas, que são transformadas em bombas-relógio

No dia 25 de dezembro de 2022, a cidade de Jequié, no sudoeste da Bahia, ficou debaixo d’água após o Rio Jequiezinho transbordar, afetando cerca de 30 mil pessoas, segundo a Defensoria Pública do estado. Muitas delas reviveram as cenas trágicas do Natal de 2021, quando tiveram que abandonar os preparativos da ceia e fugir com a roupa do corpo para tentar salvar a própria vida. Na ocasião, uma grande enchente tomou conta de bairros do município, abruptamente, destruindo algumas moradias e comprometendo a estrutura de outras. Ainda assim, muitas famílias voltaram para casa após o alagamento, mesmo sob o risco de desabamento, por não terem para onde ir. 

No início deste mês, a Justiça responsabilizou a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) pelos alagamentos causados pela abertura repentina da comporta da Barragem de Pedra, que teve seu volume elevado pelas chuvas intensas no mês. O entendimento da Justiça é que a empresa deveria ter dado vazão ao volume de água gradativamente e comunicado o poder público antecipadamente sobre a abertura das comportas, para que se fosse possível avisar e realocar as famílias possivelmente afetadas – o que não aconteceu.  

O episódio mostra que os eventos meteorológicos extremos têm sido, a cada ano, mais recorrentes e intensos no Brasil e ainda agravados pela atuação irresponsável de empresas controladoras de barragens, que se transformam em bombas-relógio durante as chuvas.

Inundação causada pela CHESF em Jequié (BA) . Foto: Gil Leonardi / Imprensa MG

Além disso, após os rompimentos de barragens da Vale em Minas Gerais, as inundações passaram a levar os rejeitos de minério que permanecem nos Rios Paraopeba e Rio Doce para dentro da casa de populações ribeirinhas. 

Desastres se intensificaram em 2022

De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais  – CEMADEN, em 2022, houve um aumento, em relação a 2021, no número de desastres climáticos que destruíram vidas, infraestruturas e meios de subsistência no país. De forma geral, esses eventos são decorrentes de uma mudança no padrão de ocorrência de chuvas no Brasil. Ou seja, enquanto algumas regiões concentram chuvas intensas em um curto espaço de tempo – causando alagamentos e deslizamentos, outras amargam estiagens ou secas cada vez mais prolongadas, que provocam expressivas perdas agrícolas, como tem acontecido no Rio Grande do Sul. 

No último relatório publicado nesta segunda-feira (20), pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU – IPCC, o órgão faz um resumo final do consenso científico dos últimos anos sobre o aquecimento do planeta e alerta que o ritmo atual das ações globais para conter as mudanças climáticas é ‘insuficiente’.

No município de Petrópolis (RJ), deslizamentos mataram mais de 230 pessoas em 2022. Foto: Fernando Fazão / Agência Brasil

“A ciência do clima é cada vez mais capaz de mostrar que muitos dos eventos climáticos extremos que estamos enfrentando se tornaram mais prováveis ​​e mais intensos devido às mudanças climáticas induzidas pelo homem. Vimos isso repetidamente em 2022 e 2023, com impactos significativos e trágicos”, explica o climatologista José Marengo.

Apenas nos primeiros 5 meses de 2022, 457 pessoas morreram em desastres causados pelo excesso de chuva no Brasil, um aumento de 57% em relação a 2021. Só no município de Petrópolis (RJ), os deslizamentos mataram mais de 230 pessoas. Foi a pior chuva registrada no município desde 1932, quando o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) começou a fazer as medições. De acordo com levantamentos da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), pelo menos desde 2013, o número desses eventos, que ocasionam decretos de calamidade, têm crescido de forma recorrente, assim como a quantidade de vítimas. 

Além de causar mortes e prejuízos econômicos para comunidades já vulneráveis socialmente, esses desastres também comprometem a saúde coletiva, inclusive no que diz respeito à saúde mental de moradores, que ficam em estado de alerta constante. 

Em Congonhas, Barragem Casa de Pedra, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), tem risco de rompimento e, a cada estação chuvosa, aterroriza moradores da cidade que avistam a estrutura de suas janelas. Barragem acumula cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeito. Foto: Joka Madruga / MAB

Desastres “naturais” são socialmente construídos

O decreto de calamidade é a principal medida administrativa dos municípios para possibilitar a utilização de crédito e recursos extraordinários para atendimento à população em situação de emergência, com providência de abrigos, insumos básicos e indenizações. Se, após o período de calamidade, não são adotadas medidas estruturantes para evitar novos desastres, porém, as ações emergenciais se tornam recorrentes a cada ano, mas não impedem novas vítimas fatais e os diversos impactos na vida dos moradores desses locais.  Por isso, especialistas defendem que, nos países em desenvolvimento – como o Brasil, os impactos ambientais têm sido socialmente produzidos.

Ou seja, os efeitos das mudanças climáticas atingem de maneira desproporcional áreas com menos infraestrutura de água tratada, saneamento, canalização e outras obras de manejo de água da chuva. Isso faz com que a distribuição de suas consequências se dê de forma desigual no território urbano.

Outra questão que precisa direcionar a atuação dos governos é o planejamento urbano. Na visão de Roberto do Carmo, integrante do Núcleo de Estudos de População da Unicamp, a expansão das grandes cidades é direcionada basicamente pelo mercado imobiliário, ignorando-se a realidade de populações assalariadas. “Observando a ocupação do espaço urbano, identificamos então que os grupos de população de baixa renda são alocadas em áreas dispersas (longe do centro), geralmente expostos a perigos ambientais, sem que haja uma atuação do poder público para reduzir esses riscos”, afirma Roberto.  

Enchentes de minério ‘revitimizam’ atingidos por barragens

Cláudia Brandão em sua propriedade em Mário Campos  (MG) que foi tomada pela enchente de lama tóxica do Rio Paraopeba em 2021. Foto: Joka Madruga / MAB

Além disso, populações que já sofrem com os impactos de empresas controladoras de barragens são novamente afetadas a cada período de chuvas, pois as inundações com rejeitos de minério aumentam o dano potencial dos alagamentos, intensificando os riscos já causados pelos rompimentos das barragens da Vale, Samarco, BHP Billiton em Brumadinho e Mariana.
Por isso o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB propôs, recentemente, para o governo Lula  a criação de um “organismo de Estado” capaz de centralizar, coordenar e liderar de forma ativa ações de reparação e prevenção de episódios como estes.

Para a organização, se os empreendimentos responsáveis por crimes ambientais agem com a licença de órgãos do estado, o estado também precisa ser responsável pela reparação dos danos causados por eles.  

Fundo Nacional para reparação de danos causados pelas barragens e mudanças climáticas

“Estamos defendendo a constituição de um “fundo nacional” para disponibilizar recursos financeiros para atendimento das populações e territórios atingidos pela construção de grandes obras (de águas, minas e energias), por rompimento de barragens e por casos extremos decorrentes de mudanças climáticas”, explica Robson Formica, integrante da coordenação do Movimento. 

Segundo o padre Antônio Claret, coordenador do Movimento do MAB, na região do Rio Paraopeba, as enchentes em Minas Gerais, particularmente nas áreas afetadas pela mineração, têm uma característica muito peculiar. “As mineradoras destroem as serras, montanhas e encostas 365 dias por ano, provocando erosão, e causam o assoreamento dos cursos d’água. No período chuvoso, esse processo se intensifica. Os rios, então, já assoreados, transbordam muito mais rapidamente, atingindo uma área muito maior”, explica.

O coordenador ressalta, que, além de mais volumosas, essas águas se tornaram  mais contaminantes. “Se as ‘enchentes de água’ já amedrontavam quem vive em área de risco por falta de uma política pública habitacional arrojada, as ‘enchentes de minério’ aterrorizam pelo seu poder muito mais demolidor e catastrófico”, analisa.  

Michelle Rocha, de Betim (MG), mostra marca deixada pela enchente com lama tóxica nas casas da cidade em 2021 por conta de transbordamento do Rio Paraopeba. Foto: Joka Madruga / MAB

A moradora de Betim (MG), Michelle Rocha, que vive próximo ao Rio Paraopeba, conta sobre o drama das enchentes de 2021, que trouxeram de volta para as ruas da cidade a lama tóxica de Brumadinho.

“A gente, que entrou nas casas inundadas para tentar salvar as coisas dos nossos vizinhos, saiu com a pele ferida. A Vale mandou seus funcionários para ajudar, mas eles foram orientados a não saírem na chuva e não entrarem na água. Então a Vale fala que a água não está contaminada, mas não deixa seus funcionários pisarem nela”, desabafa a moradora.

Ela também conta sobre o medo da intoxicação dos seus três filhos, já que alguns moradores da região constataram a presença de metais pesados no organismo.  “Falta sensibilidade e humanidade por parte da empresa para olhar para vida dessas pessoas que estão há quatro anos esperando por justiça e por direito à vida digna, enquanto sofrem todos os dias com a contaminação”, emenda.

Estiagem chega a causar 70% de perda na produção agrícola no Rio Grande do Sul

Enquanto moradores do sudeste, norte e nordeste do país sofrem com o aumento das precipitações e inundações, há quatro anos seguidos, os estados do sul do país têm lidado com secas extremas que afetam o abastecimento de água para o consumo humano e para os animais, a produção agrícola e a pastagem do gado. Os efeitos para a economia são severos. A maior parte do prejuízo relatado vem da agricultura — onde as perdas somam R$ 4,3 bilhões. 

Ricardo Montagner, produtor rural e coordenador do MAB, é morador de Charrua (RS), no noroeste do estado, e conta  sobre a situação de pequenos agricultores que vivem do cultivo de milho ou criação de gado. 

“Os prejuízos para a safra de grãos e hortifruti e, também, para a agricultura de subsistência são enormes e irreparáveis, especialmente para os pequenos. No meu caso, em 2022, a perda de capacidade de produção de milho chegou a 70%”.

Ricardo também fala sobre a questão do impacto geral para a qualidade de vida da população. “A temperatura aqui se elevou muito, chegando a 40 graus, um calor insuportável. Não tem umidade no ar e os riachos da região também secaram. Então, não só a agricultura, mas a vida das pessoas, em geral, foi afetada pelo clima aqui e em outras partes do Brasil”, afirma. 

Quanto custam as vidas humanas perdidas nos desastres ambientais

Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG) destruído pela lama da Barragem do Fundão. Foto: Isis Medeiros

Para o pesquisador do INCT Mudanças Climáticas, Jacques Marcovitch, diante dos últimos episódios, fica cada vez mais clara a importância de se planejar e executar ações não só de mitigação, mas também de adaptação às mudanças climáticas. “A questão que deve ser colocada toda vez que há eventos extremos, seja a seca ou a inundação, é, primeiro: como ajudar as comunidades que foram afetadas? Segundo: perguntar como fazer com que essa tragédia não se repita. Como preparar as comunidades para não se repetir?”

Marcovitch explica que, em cada caso e cada território é preciso pensar em soluções específicas, seja para as comunidades que vivem em áreas de encostas ou áreas de estiagens sucessivas. Em alguns casos é preciso avaliar a realocação de pessoas, em outras situações é possível criar estruturas de segurança, mas o foco precisa ser sempre preservar as vidas. 

“Os prejuízos materiais, esses são mais fáceis de calcular. Agora, como se quantifica uma vida humana? Quanto custa uma vida humana? Há metodologias que a Organização Mundial da Meteorologia utiliza: tem a ver com a idade, esperança de vida, mas tem muito a ver com a cultura de vários países. O fato é que são sempre custos muito elevados e inaceitáveis para nós enquanto sociedade”.

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