II Encontro de Atingidos da Amazônia destaca importância de marco nacional sobre direitos humanos e empresas

Em encontro organizado pelo MAB em Belém (PA), militantes do Movimento e de diferentes organizações populares defenderam a aprovação de projeto de lei que cria marco legal sobre direito dos atingidos

Maria José Brito, liderança do Quilombo São Jos´é de Icatu, foi atingida pela Hidrelétrica de Tucurí e é ameaçada pelo Projeto da Hidrovia do Araguaia-Tocantins. Foto: Gabrielle Sodré / MAB

“Como humano a gente tem os nossos direitos, né? Só que esses direitos não chegam nas mãos da gente. A gente luta por eles, mas eles não chegam. Eu tenho direito à casa, à alimentação adequada, à água potável, à saúde e à educação”, reivindica Maria José Brito de Souza, liderança do Quilombo de São José do Icatú, localizado no município de Mocajuba (PA).

Maria José enfrenta pela segunda vez o medo da sua comunidade ser atingida por um empreendimento. Após ter sofrido os grandes impactos da implementação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, em 1984, Maria agora teme que o Rio Tocantins sofra danos irreversíveis devido à implementação da Hidrovia Araguaia-Tocantins. O licenciamento para a obra foi liberado, mesmo sem a consulta prévia aos indígenas e comunidades afetadas pelo empreendimento.

São casos como esse, que violam os direitos humanos dos atingidos, que poderiam ser enfrentados com a aprovação do Projeto de Lei (PL) 572/22, que cria um marco nacional sobre direitos humanos e empresas. O texto, demanda histórica dos atingidos, estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas de prevenção e reparação dos danos causados pelas barragens em todo o país.

Esse foi um dos temas debatidos ontem, 28, durante o II Encontro dos Atingidos e Atingidas por Barragens da Amazônia, que foi organizado pelo MAB em Belém (PA) e reuniu cerca de 300 atingidos dos nove estados da Amazônia brasileira. O debate foi promovido pelo Centro de Direitos Humanos e Empresas da UFJF (Homa), que é responsável por um dos estudos que subsidiou o texto do PL.

Tchenna Maso, doutoranda em direitos humanos e representante do Centro de Direitos Humanos e Empresas da UFJF (Homa). Foto: Gabrielle Sodré / MAB

O projeto também é fruto de uma discussão coletiva com pesquisadores ligados à Universidade Federal de Juiz de Fora, do MAB, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da ONG Amigos da Terra Brasil. No encontro, a doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Paraná e representante do Homa, Tchenna Maso, afirmou que, se aprovado, esse projeto será pioneiro no mundo. “A gente está com grande protagonismo nesse tema no Brasil, justamente porque temos visto que se propaga aqui uma cultura da impunidade. Ou seja, compensa para as empresas violar os direitos humanos, porque elas não vão ser responsabilizadas”. A pesquisadora explicou que, entre outros temas, o projeto estabelece as obrigações dos governos e empresas controladoras de barragens e reconhece os direitos das pessoas atingidas pelos empreendimentos em relação à indenização, à informação e à consultoria de assessorias técnicas independentes, entre outros

O Projeto de Lei foi apresentado em março de 2022 na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal e, atualmente, está tramitando na Comissão de Segurança Social da Casa, onde aguarda votação. “É preciso que a sociedade entenda os danos (das barragens), a necessidade de defesa de direitos dos atingidos e abrace esse projeto”, ressaltou Tchenna.

Durante o debate, os atingidos apresentaram propostas sobre o tema aos parlamentares presentes, como Vivi Reis, deputada federal (PSOL/PA), e Lívia Duarte, vereadora pelo PSOL em Belém. “Esses que eles chamam de grandes empreendimentos estão acabando com a cultura, com a vida e com o futuro do nosso país. Por isso, é muito importante que possamos acompanhar a tramitação do projeto (572/22) e acompanhá-lo também assim que aprovado, para garantir a sua execução”, afirmou Vivi.

Como mensurar as perdas humanas provocadas pelas barragens?

Iury Paulino, integrante da coordenação nacional do MAB. Foto: Igor Meirelles / MAB

Em sua fala, Iury Paulino, integrante da coordenação nacional do MAB, provocou os presentes a discutirem sobre o tamanho dos impactos sofridos pelos atingidos: “Como mensurar os problemas que assolam os atingidos e as atingidas? Como medir o valor da perda de entes queridos, de amores da vida, ou da própria vida?”. Iury foi atingido pela Barragem do Açude Castanhão, no município de Jaguaribara (CE). Em sua fala, ele relatou a história de sua família, que tinha uma vida confortável graças à sua produção agrícola, mas perdeu suas terras para o empreendimento. O pior drama, porém, foi a morte dos avós. Após o deslocamento forçado da área rural para a cidade, a família passou por várias privações e sofreu com a distância de suas terras, até que os avós de Iury ficaram extremamente deprimidos e morreram.

A moradora do Quilombo de São José, Maria Brito também teve perdas irreparáveis. Ela conta que duas irmãs morreram intoxicadas pelos dejetos da Usina de Tucuruí. A contaminação foi descoberta em Belém, a partir de exames após a morte de muitas pessoas do Quilombo. No período da obra, os atingidos descobriram que durante o corte da vegetação, na área da barragem, foi utilizado o Agente Laranja, um desfolhante químico de uso militar altamente tóxico. Tambores com resíduos do produto foram submersos, poluindo a água e ocasionando a morte de pessoas e animais e muitas doenças, como intoxicação aguda e câncer de pele nos moradores do entorno.

Nesse sentido, Iury reforçou a dimensão das transformações causadas nas comunidades e na vida pessoal dos atingidos. “Como você calcula o que representou a morte do meu avô Luiz e da minha vó Maria, chamada de Dona Nenê pela minha família? Isso é uma dimensão que é incalculável quando se pensa em indenizar ou reparar isso. Como você calcula as perdas de uma comunidade que viveu cinquenta, cem anos em determinado lugar, tem seus entes queridos lá e foi obrigada a se mudar? Isso não tem como calcular”, questionou.

Iury também lembrou que as áreas atingidas têm grandes índices de depressão e suicídio. “Imagine você o que é uma pessoa que mora abaixo de uma barragem depois de ter visto as de Brumadinho e Mariana se romper. Como é que você consegue dimensionar o sofrimento de uma pessoa dessas? Já vi companheiras que os filhos não conseguem dormir. Não é só a dimensão do que é material, não é só ficar sem a casa, não é só ficar sem a terra. Às vezes isso não aparece. Mas a dimensão sentimental é muito profunda”, ressaltou Iury.

 O II Encontro dos Atingidos e Atingidas da Amazônia faz parte da programação coligada ao 10º Fórum Social Pan-amazônico, que acontece no período de 28 a 31 de julho na Universidade Federal do Pará (UFPA).

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