Decisão judicial que proíbe protestos reforça poder das mineradoras, diz atingida de Mariana

Quase sete anos após o rompimento da barragem de Fundão, população ainda não foi reparada

Primeiro tijolo em reassentamento só veio após seis anos. Foto: Isis Medeiros

Uma decisão judicial tem causado polêmica e insatisfação entre os atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco/Vale, em Mariana (MG). Na última semana, a 2ª Vara Cível da Comarca do município proibiu protestos que impeçam a Fundação Renova de usar vias de acesso ao reassentamento do Novo Paracatu de Baixo.

Tomada em caráter de urgência, no dia 6 de julho, a definição aconteceu após solicitação da Fundação mantida pela Vale. A argumentação da Renova era de que as manifestações dos atingidos estavam atrasando as obras do  reassentamento coletivo.

Porém, a Cáritas Brasileira, Assessoria Técnica Independente que atua na região, afirma que são justamente os atingidos os mais interessados na conclusão das obras e que a Renova não tem cumprido os prazos de entrega do reassentamento.

“Se elas [pessoas atingidas] consideraram necessária a manifestação em via pública, é em razão das inúmeras violações à que são submetidas diariamente desde o rompimento da barragem, o que inclui o não reconhecimento do direito à moradia de dezenas de famílias”, explicou Gabriela de Moura Pereira Câmara, coordenadora operacional da Assessoria Jurídica da Cáritas.

Primeiro tijolo só 6 anos depois

O rompimento da barragem da Vale-BHP-Samarco, em Mariana, foi considerado o maior crime ambiental da história do Brasil, matou 19 pessoas e destruiu comunidades,

Apenas em novembro do ano passado, seis anos após o rompimento da barragem, a Fundação Renova colocou o primeiro tijolo no reassentamento coletivo de Paracatu de Baixo.

Foi buscando expor a situação, acelerar a construção das casas e reivindicar reparação integral, que os moradores das comunidades atingidas começaram a organizar manifestações pacíficas na região.

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Na avaliação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a decisão judicial apenas reforça o poder das mineradoras, em detrimento daqueles que mais precisam de auxílio.

“Ela atrasa as obras há mais de seis anos e meio, não tem nenhum prazo para a finalização e quando os atingidos tentam se organizar para denunciar isso para a sociedade eles são vistos como criminosos”, enfatiza Letícia Oliveira, integrante do movimento.

“Querem calar nossa boca”, diz atingida

Após a primeira decisão judicial, com a continuidade das manifestações, a Renova voltou a buscar a Justiça. Desta vez, além de citar nominalmente onze atingidos no processo, a Fundação solicitou a autorização do uso de força policial contra a população, pedido que foi indeferido pela juíza da 2ª Vara Cível da Comarca de Mariana.

Ao Brasil de Fato MG, uma das atingidas, que prefere não se identificar por medo de represálias, afirmou que a população se sentiu silenciada pela postura da Renova e do órgão de justiça.

“Querem calar nossa boca nos colocando como vândalos, coisa que não somos. Só queremos o nosso direito garantido. Nós somos os assassinados e não os assassinos”, critica.

Em nota, divulgada na quarta-feira (20), a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão de Mariana (CABF) afirmou que os moradores estão em ‘vidas provisórias’ há quase sete anos, por responsabilidade da Fundação Renova, e que ficou incrédula “com o tratamento desigual dado aos atingidos e atingidas, considerando que não há sequer a preocupação de escutá-los antes de se tomar uma decisão como está”.

Direito de manifestar

Presente no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a liberdade de expressão pressupõe o direito de reunião pacífica em locais públicos. 

Já o artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal de 1988, afirma que todos podem se reunir pacificamente “sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização”.

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Para Gabriela, da Cáritas, a decisão judicial fere os direitos das pessoas atingidas, uma vez que as manifestações realizadas não descumprem com nenhuma das duas normativas.

“Sabemos que nenhum direito é absoluto, mas considerando que no caso da manifestação que é alvo da decisão não houve comprovação de qualquer excesso por parte dos manifestantes para justificar o cerceamento da liberdade de reunião, resta evidente a afronta aos direitos garantidos pela Constituição Federal”, explica.

Já tendo recorrido a diversas formas de reivindicação de direitos, os atingidos afirmam que os protestos de rua são a única alternativa que os restou. É o que explica Letícia, do MAB.

“Já foram tentadas outras formas e não houve respostas. Visto que não tem prazo para as casas ficarem prontas. Esse é o espaço que existe para manifestar sobre isso. Os espaços que haviam antes, como o contato direto com a Fundação Renova, não se mostraram viáveis”, argumenta.

O outro lado

Procurada pelo Brasil de Fato MG, a Renova afirmou que considera legítimas as manifestações pacíficas, porém, “nenhum direito individual se sobrepõe ao direito coletivo e de centenas de atingidos”  e que o bloqueio das vias “impede o acesso de cerca de 2000 colaboradores ao canteiro de obras”.

A Fundação destacou ainda que “cerca de R$ 21,8 bilhões foram desembolsados nas ações de reparação e compensação até maio de 2022”.

Edição: Elis Almeida

* Texto originalmente publicado em Brasil de Fato

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