Moradores do Tapajós são “atropelados” por corredor logístico do agronegócio em meio à maior floresta tropical do mundo

O projeto é construir 40 novos portos (6 já estão em funcionamento), uma ferrovia e 44 hidrelétricas, além de duplicar a Br-163.

Ribeirinhos do Rio Tapajós, na região de Itaituba-PA. A crescente exploração do rio prejudica a vida de moradores, pescadores artesanais e indígenas em uma região estratégica para a preservação da Amazônia. Foto: Joka Madruga/MAB

Inserido em uma das maiores bacias hidrográficas do País, o Rio Tapajós abrange os estados do Mato Grosso e Pará e arrebata afluentes por 840 quilômetros até desaguar no Rio Amazonas, no município de Santarém (PA). Pelo caminho, suas águas garantem o abastecimento de dezenas de cidades no meio da floresta, fornece peixes para aldeias e comunidades ribeirinhas, serve de “estrada” para conectar diferentes territórios da Amazônia e de espaço de lazer e convívio para os moradores de suas margens. Ao todo, a Bacia cobre 492.000 quilômetros quadrados e tem mais que o dobro do tamanho do Reino Unido.

Apesar da sua enorme relevância ecológica, cênica, social e cultural, a região tem sido fortemente impactada pela implementação de projetos de infraestrutura focados em criar um corredor logístico para levar soja e milho à China, Oriente Médio e Europa.

As obras têm “atropelado” as comunidades locais, impondo violações de direitos aos moradores de suas margens e ameaças à biodiversidade amazônica, aos ecossistemas, aos meios de subsistência tradicionais, além de impactar as mudanças climáticas, segundo meteorologistas que estudam a região.

De acordo com o pesquisador Jondison Rodrigues, da Universidade Federal do Pará, o município de Itaituba e região estão no centro de um jogo de poderes de grandes empresas, bancos, fundos e multinacionais que miram o território para lucrar alto. Ele explica que esse é o chamado “Arco Norte”, projeto do agronegócio, com participação do Estado. “Esse território constitui para eles uma região cinza, sem pessoas e cultura, cujo objetivo é a extração e transferência de lucro”, afirma.

Comunidades que dependem diretamente de recursos naturais sofrem com degradação do rio. Na foto, ribeirinhos na região de Itaituba-PA. Foto: Joka Madruga/MAB

Em nome deste projeto desenvolvimentista retomado na Amazônia, o plano é transformar o rio Tapajós em uma grande hidrovia industrial, além de construir mais de 40 barragens, novas estradas e ferrovias (Ferrogrão) na Bacia. Nesse corredor logístico, cada vez mais commodities do Mato Grosso serão transportadas para a costa e, em seguida, para o exterior.

Os moradores do distrito de Miritituba (que tem cerca de 15 mil habitantes) convivem com o tráfego diário de 1.500 carretas durante a alta safra da soja. Foto: Folha Progresso

De todos os empreendimentos projetados na região, o mais avançado é o Complexo Portuário de Tapajós. Ao todo, cerca de 40 portos pertencentes a grandes empresas como a Cargil, a Odebrecht e o grupo Ipiranga, estão sendo planejados na Bacia. Frede Vieira, integrante da coordenação estadual do MAB no Pará, explica que só no município de Itaituba, onde ele vive, seis portos já estão em operação.

De acordo com o estudo “LOGÍSTICA NO MÉDIO TAPAJÓS: O caso de Itaituba-Miritituba”, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), a região está sendo tratada como uma “zona de sacrifício”, isto é, um espaço de exploração intensa e continuada que tende à exaustão tanto da natureza quanto das pessoas que habitam o território.

O caso mais emblemático é do bairro de Itaituba, Nova Miritituba, que se localiza no percurso onde as carretas passam para descarregar grãos nos portos. Na localidade, a população acaba por respirar poeira e “pó de soja” 24 horas por dia. Além disso, sofrem com a poluição sonora dos caminhões, com o mau cheiro causado pelo apodrecimento da soja e do milho que caem nas ruas, com o risco de acidentes e com o aumento populacional do bairro. Esse último fator piora as já precárias condições sociais de acesso à energia, à água, ao saneamento básico e à moradia, conforme explica Jondison Rodrigues em sua tese.

O INESC acompanha os empreendimentos na região desde 2019 com o apoio de movimentos como o MAB. De acordo com a organização, o processo de desmonte das políticas socioambientais do país produziu um cenário potencial de destruição florestal, invasão e desafetação de áreas protegidas e violações de direitos de povos e comunidades tradicionais e camponesas sem precedentes nestes últimos três anos.

“Para o setor do agronegócio (com o apoio do estado), os moradores da região podem ser explorados, violentados e mortos, sob a justificativa de alimentar e desenvolver o mundo. Esse, portanto, é um projeto elitista, racista, colonial e de morte”, analisa Jondison.

Crianças ribeirinhas se banham em Rio Tapajós, em Itaituba. Com o intenso fluxo de embarcações no município, o rio deixou de ser um espaço seguro para pescadores e outros moradores nos últimos anos. Foto: Joka Madruga/MAB

As ameaças aos moradores da região, porém, acontecem há décadas. Frede afirma que um dos projetos com maior potencial destrutivo para a Bacia é o do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, que envolve a construção de 7 usinas hidrelétricas nos rios Tapajós e Jamanxin. No total, porém, 44 usinas são citadas nos inventários das sub-bacias do Teles Pires, Juruena e Tapajós.

“Se saírem do papel, essas barragens inundarão mais de 200.000 hectares incluindo unidades de conservação, terras indígenas, comunidades ribeirinhas e terras públicas no processo de regularização / designação. Tudo isso em uma das regiões com os maiores índices de desmatamento, mineração e garimpo no Pará”, afirma Frede.

Em 2016, o Ibama arquivou o licenciamento da Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, a maior usina do complexo. A usina alagaria parte da Terra Indígena Sawré Muyby, da etnia Munduruku, e essa foi a principal razão do licenciamento ter sido negado.  A suspensão foi aclamada como uma vitória de conservação e direitos humanos, mas os atingidos seguem em alerta por medo da reversão do arquivamento ou da liberação de outras barragens.

Povos indígenas tiveram papel essencial no processo de resistência contra o Complexo Hidrelétrico do Tapajós. Foto: Joka Madruga/MAB

Segundo Philip Fearnside, especialista em desenvolvimento e deflorestação amazônica, se as outras 43 barragens forem implementadas, haverá muitos outros impactos severos, principalmente se todas elas forem consideradas juntas.

“Represas inundam florestas, deslocam pessoas, emitem gases de efeito estufa (principalmente nos trópicos), e interrompem o fluxo de água rio abaixo e entre canais fluviais e planícies aluviais”, alerta o pesquisador.

Por isso, quando analisados em conjunto, os impactos dessas obras seriam devastadores não só para os moradores das margens destes rios, mas para todo o bioma amazônico.

“Vale a pena também ficarmos de olhos abertos e acompanhar especialmente os processos dos dois complexos menores de pequenas centrais hidrelétricas, uma no rio Itapacurá e outra no rio Cupari. Ambos trarão prejuízos sociais e ambientais para várias comunidades”, destaca Frede.

A luta contra o Complexo Hidrelétrico do Tapajós

Ativistas do Greenpeace e índígenas Munduruku usam pedras para formar a frase “Tapajós Livre” nas areias de uma praia às margens do rio de mesmo nome, próximo ao município de Itaituba, no Pará. O protesto, que contou com a participação de cerca de 60 Munduruku, ocorreu na região onde o governo pretendia construir a primeira de uma série de sete hidrelétricas na bacia do Tapajós. Itaituba. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace.

Para resistir à implementação das hidrelétricas, desde 2010, o MAB tem articulado a população dos municípios ameaçados (especialmente Itaituba e Trairão – PA), para lutarem pelos seus direitos. Luís Matos de Lima, carpinteiro e militante do MAB em Trairão, explica que o Movimento teve uma importância estratégica para articular a comunidade no processo de resistência contra a usina São Luiz do Tapajós.

A chegada de grandes empresas a um território costuma ser acompanhada por anúncios de modernização e desenvolvimento econômico, conforme conta Luís. Empregos, estradas e aumento da renda são algumas das promessas que simbolizam o suposto progresso trazido pelos empreendimentos.

Desde 2010, o MAB atua na região onde o município de Itaituba está inserido, para articular a população que luta contra o Complexo Hidrelétrico do Tapajós. Foto: Foto: Joka Madruga/MAB
Desde 2010, o MAB atua na região onde o município de Itaituba está inserido para articular a população que luta contra o Complexo Hidrelétrico do Tapajós. Foto: Foto: Joka Madruga/MAB

“Quando eles chegam, o que eles fazem primeiramente é tentar desunir a comunidade e criar conflitos. Eles prometiam que a obra ia ser boa, que as pessoas iam ter emprego, que a comunidade iria melhorar. Mas, graças ao MAB, a gente sabia o que acontecia em outros lugares que foram atingidos por barragens (nos Rios Xingu e Madeira)”, conta o morador.   

Segundo o ele, muitas pessoas da comunidade e Pimental, onde ele mora, ficaram inicialmente a favor da hidrelétrica. “Mas a gente se reuniu, conseguiu se organizar e conscientizar muitas pessoas para lutar, até quando o projeto foi paralisado. Ainda temos uma grande preocupação que ele seja retomado, por isso, estamos atentos”, afirma.

O direito à consulta livre e informada

O processo de resistência uniu várias comunidades ribeirinhas, povos indígenas do Baixo, Médio e Alto Tapajós com o mesmo propósito: dizer não à construção do Complexo Tapajós.  

A violação dos direitos, porém, aconteceu mesmo antes da implementação do projeto. Segundo relatos dos atingidos, as empresas entraram nas comunidades sem pedir licença aos moradores, atrapalharam a boa convivência de muitos anos nas vilas, realizaram pesquisas sem a anuência da comunidade e inflamaram pessoas levando a diferentes conflitos.

De acordo com Frede, nesse processo, o que prevalece de forma geral é a falta de esclarecimento para a população sobre o processo de construção das barragens.

Por isso, ele explica que uma das frentes de atuação do MAB é no sentido de garantir o direito de consulta prévia às comunidades sobre o desejo de receberem novos empreendimentos em seus territórios ou não de forma consciente, a partir de informações transparentes.

Em janeiro de 2018, a ONG de direitos humanos Terra de Direitos, com apoio do MAB e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), elaborou um Protocolo de Consentimento Livre, Prévio e Informado (baseado na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT) com as comunidades Pimental e São Francisco, nos municípios de Trairão e Itaituba, respectivamente. “O Protocolo é uma ferramenta relevante para a resistência das comunidades ribeirinhas aos impactos negativos das barragens e outros projetos de grande escala, ajudando-as a considerar os seus direitos, necessidades e demandas relacionadas ao seu modo de vida tradicional”, explica Frede.

O corredor da soja

Na margem direita do rio Tapajós, o distrito de Miritituba, pertencente ao município de Itaituba (PA), é atualmente nó logístico de uma das rotas mais importantes para escoamento da soja brasileira que segue via hidrovia do Tapajós-Amazonas até os portos de Santarém (PA), Barcarena/Belém (PA) e Santana (AP), de onde são embarcados para o exterior. Foto: Marcos Camargo / Globo Rural

No município de Itaituba, os integrantes do MAB também têm feito uma articulação contra os portos que mudaram drasticamente a vida da população. Todos os anos, os moradores do distrito de Miritituba (que tem cerca de 15 mil habitantes) convivem com o tráfego diário de 1.500 carretas durante a alta safra da soja, por exemplo. A coordenadora do MAB Joelma Oliveira conta que o grande fluxo de carretas na BR 163 fez com que as comunidades ao longo dessa estrada perdessem o direito de ir e vir com segurança.

Muitos moradores já perderam a vida ou entes da família em atropelamentos na rodovia. Além disso, o tráfego trouxe uma explosão de casos de assédio, violência contra as mulheres, tráfico de drogas, consolidação de facções criminosas e violência no trânsito.

Uma questão que tem acontecido é o feminicídio. Numa cidade pequena, onde todo mundo conhece todo mundo, isso é uma coisa que choca. Por isso, nós temos trabalhado muito a questão da violência contra a mulher nas nossas ações”, conta Joelma.

Os investimentos no corredor logístico também têm gerado uma supervalorização fundiária, pressionando comunidades tradicionais a deixarem suas terras. Isso favorece a concentração de renda e altera a paisagem de uma região que é considerada um dos maiores mosaicos de áreas protegidas no mundo.   

Fred também ressalta que há irregularidades na operação dos portos. “A Cargil funcionou aqui sem a licença de funcionamento liberada pela ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e os processos de licenciamento ambiental das empresas do agronegócio foram todos uma espécie de cópia e cola”.

Por isso, para coibir as irregularidades, a atuação local do MAB nesta região também está ligada à atuação do MPF, IBAMA e governos locais e estadual, com foco em aprofundar a discussão em torno da necessidade de uma Política Estadual dos Direitos das Pessoas Atingidas por Barragens (PEAB).

Saiba mais

Acesse a tese, “O projeto Arco Norte na Amazônia e a sua relação com o Agronegócio”, do pesquisador Jondison Rodrigues da Universidade Federal do Pará para entender todos os impactos do Arco Norte para a Bacia do Tapajós.

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