As enchentes e o modelo de exploração da natureza em Minas Gerais

Enchentes deixam milhares de desabrigados no estado. As inundações com rejeitos de minério aumentam o dano potencial dos alagamentos e as hidrelétricas são transformadas em bombas-relógio

Enchentes matam 45 pessoas e deixam 1089 mil desabrigados no pais Gil Leonardi / Divulgação (MG)

Os moradores da Bacia do Paraopeba, em Minas Gerais, têm testemunhado a grande solidariedade dos brasileiros nesse momento de socorro emergencial às vítimas das tragédias em Minas e no Brasil. As doações, porém, não superam, em quantidade, o volume de ‘lama de minério’ retirado apenas das ruas do município de Congonhas, algo em torno de 300 toneladas.

As enchentes em Minas Gerais, particularmente nas áreas afetadas pela mineração, têm uma característica muito peculiar. As mineradoras fuçam as serras, montanhas e encostas 365 dias por ano e, provocando erosão, vão assoreando os cursos d’água. No período chuvoso, esse processo se intensifica. Um grande volume de material desce nas águas e os rios, já assoreados, transbordam muito mais rapidamente, atingindo uma área muito maior.

Além de mais volumosas, essas águas ficam mais pesadas. Se as ‘enchentes de água’ significam um tapa na cara de quem paga imposto e se vê obrigado a morar em área de risco por falta de uma política pública habitacional arrojada, as ‘enchentes de minério’ lembram um soco na boca do estômago de toda a sociedade pelo seu poder demolidor e catastrófico.

O papel da mineração na situação de calamidade vivida em Minas Gerais

Mina Serra Azul, em Itatiaiuçu (MG) Foto: Reprodução Tv Globo

As imagens visíveis dessas tragédias (crimes) escondem uma realidade ainda pior: a disseminação de material pesado, extremamente danoso aos diversos viventes e à vida humana. Cada ‘enchente de minério’ – provocada pela erosão das mineradoras, pelo rompimento ou transbordamento de um dique ou barragem de rejeito – faz esse material tóxico chegar mais longe, atingindo mais gente.

Em reunião do MAB, realizada em Congonhas com moradores que vivem abaixo da barragem Casa de Pedra (de propriedade da mineradora CSN), atingidos reclamam de disenteria, febre e mal estar. O bairro está parcialmente inundado pela cheia do Rio Maranhão.

A dor maior, porém, é pelo sentimento de medo e de abandono. O risco real de rompimento da barragem, somado à falta de transparência da CSN e de órgãos de governo, dá margem à disseminação de fake news entre os moradores

Acometidos pelo medo de serem soterrados, os moradores Dora e Tião contam que deixaram sua morada para dormir dentro do próprio carro no Dom Oscar, bairro na parte mais alta da cidade. Um amigo, porém, vendo o desespero deles, os convidou para passar a noite em sua casa.

‘Não apareceu nenhuma autoridade aqui para dar apoio durante as enchentes’, dizem os moradores do bairro Residencial, onde está a barragem da CSN. O próprio povo socorreu o povo num bairro deixado às traças no último período. Creche e escola foram fechadas no dia 12 de fevereiro de 2019. A iluminação pública é ruim. Há boatos de que desejam tirar o posto de saúde. O desafio é transformar toda essa indignação em organização popular e luta, conforme contam os moradores.

Enquanto duram as chuvas, o risco de doenças reside no espaço-limite dos córregos e rios e nas águas lamacentas de suas margens. Quando vem o sol, o barro transforma-se em poeira tóxica e seu alcance se faz ilimitado, pelo ar afora e pelos pulmões adentro.

A ‘enchente de minério’ – com seu volume e peso- somada às outras formas de exploração irracional da natureza, aumenta, absurdamente, o dano potencial das hidrelétricas, transformadas em bombas-relógio que podem romper-se ou necessitar de abertura das comportas com enchentes ‘programadas’ da Cemig e outras.

Nesse ambiente capitalista, o regime dos rios passa de natural à artificial, orientado pelo maior lucro em detrimento de toda e qualquer forma de vida.

São Pedro perdeu a gerência do departamento meteorológico

Na sua narrativa folclórica, as tragédias em Minas estão relacionadas à mudança da chefia do departamento de águas e enchentes. Não é mais do céu! São Pedro, no comando há mais de um milênio, perde o poder das chaves para a gerência de mineração e barragens. Agora o controle é cá da terra mesmo, bem de perto, embora seja Sociedade Anônima. Vale, Gerdau, Ferro +, Vallourec, todas fazem parte dessa gestão.

A CSN, íntima da gerência, trata logo de garantir o futuro de seus negócios, sequestrando, somente na cidade dos profetas, água suficiente para exploração de minério até 2050. Quantia enorme! Toda a água vendida pela Copasa em Congonhas, com 55 mil habitantes, soma 140 litros por segundo e a Companhia Siderúrgica Nacional, numa simples reunião do Comitê de Bacia do Paraopeba, abocanha 800 litros por segundo.

 Defensores da privatização dos bens naturais acham que assim, nesse novo modelo de gestão, fica até melhor. Ninguém duvida de que faltará água no período da seca. Mas não será preciso carregar pedra morro acima até o pé do cruzeiro, lá no topo. Nem haverá necessidade de pedido ao santo. É só ligar para a CSN pedindo água e, ela – segundo afirma -, tudo proverá.

Barragem da mina Pau Branco, da Vallourec, em Nova Lima/MG. Foto: Bruno Costalonga Ferrete

Nesse tempo em que verdade e mentira se confundem, o senso comum vive a construir castelos na areia e morre de ilusão. Há sérias críticas à ‘nova’ gestão de águas e enchentes, principalmente a partir desse início de janeiro de 2022. O sol se apaga por uma semana inteira e a chuva cai, torrencialmente.

No último dia 8, uma pilha de estéril da Mina Pau Branco (de propriedade da mineradora francesa Vallourec) se desprendeu e provocou o transbordamento do dique Lisa. O rejeito de minério provocou a interdição de uma rodovia federal por três dias no km 562, feriu uma pessoa e levou à remoção de moradores da região.

O caso mais grave desse crime à francesa, porém, é o soterramento de carro com cinco vítimas fatais, em Brumadinho: Deizy, professora na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Henrique, seu esposo, os filhos Vitor e Ana, de 6 e 3 anos; e Geovane, condutor do veículo. Quando vinham de Paula Cândido, na zona da mata mineira, com voo marcado em Confins para Mato Grosso do Sul, resolveram pegar um desvio por conta da interdição da O40. Foram, então, surpreendidos por uma avalanche de lama. A cidade natal da família de 10 mil habitantes chorou no velório e sepultamento das vítimas no dia 12 e a prefeitura local decretou luto por três dias.

Existe, porém, explicação para tudo que é tragédia e crime. As mineradoras estão ‘desligando’ trabalhadores com larga experiência, depois da aprovação do turno de 12 horas, e admitindo novatos, pois, fazendo as contas, a ‘inexperiência’ afeta apenas a segurança do povo e, isso, não é problema delas. Com recurso metafórico, é de se supor que a contratação da nova chefia de águas e enchentes – após a deposição de Pedro, que trabalhava de graça – seguiu essa mesma lógica do mercado, com operador estagiário.

Embora tenha se tornado normal o esquecimento das tragédias logo no ‘dia seguinte’, parece que, dessa vez, será diferente. A mudança de comando vem gerando o maior rebuliço. As opiniões se dividem e o debate promete esquentar.

Há um segmento dito conservador que defende a recondução de Pedro, mesmo sabendo ter poucas chances. Depois que os gregos superaram o mito pelo pensamento filosófico e a ciência evolui, o folclore perde o posto da explicação causal.

Há outro segmento dito progressista e empreendedor que aglutina desde devotos de Pedro até céticos do saber científico. O deus todo poderoso deles é o cifrão. Quando despidos da roupagem discursiva, dinheiro é o único ‘valor’ no qual acreditam. No momento, o comando é desse grupo, o mais forte, escorado no capital financeiro.

O Paraopeba está associado a um terceiro segmento que, apesar de pequeno em número e força econômica, vem ganhando campo, apostando na emancipação da consciência, na organização e na pressão popular.

A esperança é sempre o povo.

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