Audiência pública discute os impactos do projeto do Complexo Hidrelétrico Garabi e Panambi que envolve 35 municípios

Sessão online promovida pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul tratou das consequências que o complexo binacional (Brasil / Argentina) teria para o meio ambiente e para a população atingida

Vista do Rio Uruguai em Porto de Mauá (RS). Foto: Silvio da Silva Vargas / Fotos Públicas
Vista do Rio Uruguai em Porto de Mauá (RS), um dos 35 municípios que seria atingido pelo Complexo Hidrelétrico Binacional Garabi e Panambi. Foto: Silvio da Silva Vargas / Fotos Públicas

No último dia 18 de agosto, foi realizada uma audiência pública para discutir o projeto do Complexo Hidrelétrico Binacional Garabi e Panambi, que envolve 35 municípios ao todo entre Brasil e Argentina. A atividade foi pautada pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a partir da solicitação do deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e vereadores da região noroeste do estado. A audiência também tratou da crise do modelo energético brasileiro, contando com a participação de diversas representações, parlamentares, ambientalistas, estudiosos, juristas e atingidos e atingidas do Brasil e da Argentina.

Os estudos em torno do empreendimento foram suspensos pelo Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul (MPE-RS) em 2015. Recentemente, em 2021, a decisão de suspensão foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), por unanimidade, em decorrência dos impactos que seriam causados ao meio ambiente, em especial ao Parque Estadual do Turvo. O projeto do complexo de barragens está situado na Bacia do Rio Uruguai, entre o Brasil e a Argentina e, caso seja construído, pode vir a atingir o estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, e as províncias de Corrientes e Misiones, na Argentina. Os primeiros estudos do projeto remontam à década de 1970. Desde então, ele gera muita apreensão entre a população atingida, especialmente as comunidades ribeirinhas que já sofrem com os impactos das sete grandes usinas hidrelétricas já construídas na Bacia do Rio Uruguai.

O deputado Jeferson Fernandes observou que essas famílias ribeirinhas, que terão suas terras banhadas pela Barragem, sofrem com a dúvida em relação ao futuro, uma vez que não há informação disponível sobre o andamento da obra. “O rio une e separa dois países e as consequências desses investimentos serão sentidas também pelo lado argentino”, considerou o parlamentar, observando que o turismo regional também será afetado.  Em sua fala, Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do MAB, afirmou que o povo brasileiro não pode ser vítima do mercado da energia.“O povo paga a 2ª tarifa de energia mais cara do mundo por conta de um modelo que privilegia os privilegiados e penaliza a população. Precisamos de uma mudança radical na política energética nacional para que o povo brasileiro não seja a grande vítima dos projetos que estão em curso”, afirmou.

Tereza Pessoa, atingida pelo megaprojeto Garabi e Panambi, fez uma fala emocionada em forma de denúncia e desabafo.

“No momento que tu afoga tua história, tu perde a identidade, não tem dinheiro que vai pagar a vida que vai ficar em baixo d’água. Não sabemos para onde irão nossos amigos e familiares e as comunidades vão ficar quebradas. Sofremos diretamente as violações, porque, em nenhum momento, fomos consultados se nós queríamos a construção das barragens aqui na nossa região”.

A atingida ainda complementou: “essas barragens, eu diria, são fábricas de sem terras, sem tetos e povo sem comida, porque nas nossas pequenas propriedades produzimos alimentos diversificados para alimentar o povo da cidade”.

O possível colapso do Rio Uruguai

Emiliano Maldonado, membro da Rede Nacional de Advogados (as) Populares (RENAP), ressaltou que o Rio Uruguai está à beira de um colapso, devido à forma como as grandes hidrelétricas foram construídas nas últimas décadas, desconsiderando a viabilidade e a continuidade da biodiversidade da bacia hidrográfica. “Além disso, as obras promovem uma série de violações de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais”, reforçou.

Também participaram da audiência Maria Elena Parras e Leandro Sanchez, representantes da Mesa Provincial “No A Las Represas”, de Misiones/Argentina. “Estamos vivendo as consequências das mudanças climáticas. Sabemos que a América Latina sofrerá os maiores impactos desse modelo de exploração sem medida da nossa casa comum. Ainda estamos a tempo de mudar”, afirmou Parras. Sanchez lembrou em sua fala da luta do povo argentino em torno da grande marcha e do plebiscito popular realizado em 2013, na província de Misiones, que decidiu pela não construção das barragens, por conta dos impactos sentidos até hoje em decorrência de outros barramentos, como o do Salto Grande (Rio Uruguai) e Yaceretá (Rio Paraná). Para Sanches, “não há valor que pague a continuidade e a preservação dos modos de vida e histórias de um povo”. A representante ressaltou também que o discurso de desenvolvimento baseado nas hidrelétricas já provou ser falso com base em outras experiências e que a energia que será produzida não se destinará a atender as necessidades do povo. “Pelo contrário, pois a cada nova barragem construída, o preço da luz fica mais caro”, observou.

Marina Dermmam, do Conselho Estadual do Direitos Humanos (CEDH) do Rio Grande do Sul, relembrou que, em 2019, o governador Eduardo Leite revogou dois importantes decretos que regulamentavam políticas de garantia de direitos das populações atingidas e a proteção das regiões impactadas por hidrelétricas. “Atualmente, não há nenhum marco legal que assegure direitos aos atingidos, num contexto de profundos retrocessos sociais”, reforçou Marina. Para Lucia Ortiz, da organização Amigos da Terra Brasil, “no contexto dos desmontes das políticas ambientais, da privatização de empresas de energia e da concessão privada de unidades de conservação no Rio Grande do Sul e no país, a financeirização da natureza para ‘compensar’ megaprojetos, sejam UHE’s ou termelétricas, é a cereja do bolo para as empresas transnacionais lucrarem em dobro: com o negócio da energia e com créditos de carbono ou biodiversidade na compra de terras ‘verdes’.”

Audiência online envolveu parlamentares, ambientalistas, estudiosos, juristas e atingidos e atingidas do Brasil e da Argentina

O professor Alexandre Krob, coordenador do Instituto Curicaca, apresentou um estudo detalhado dos impactos ambientais das barragens, com destaque para o Parque Estadual do Turvo, caracterizado como um importante corredor ecológico trinacional para conservação e reprodução de diversas espécies da fauna e flora, que será duramente afetado por Garabi e Panambi. “O Turvo é uma ilha no Brasil cercada por lavouras de soja. O Brasil não é mais opção para a conservação dessas espécies. Esse corredor ecológico é importante, pois sem essa interação, as espécies não sobrevivem. O Salto do Yucumã não vai ser totalmente alagado, mas muito comprometido, considerando que já temos prejuízos pela UHE Foz no Chapecó, pela dinâmica alterada da soltura das águas da barragem”, declarou.

Para Reginete Bispo, suplente do senador Paulo Paim (PT-RS), “nestes megaprojetos, que desconsideram a população, as mulheres sempre são as mais afetadas, pela desagregação da vida familiar e comunitária, do setor produtivo e das alternativas que as mulheres vão construindo ao longo da vida para sobrevivência”. A suplente também afirmou que o mandato do senador Paim está à disposição para levar a discussão até o Senado a partir de construções coletivas. Segundo Elisangela Soldatelli Paim, representante da Fundação Rosa Luxemburgo, “é impossível desassociar todos esses projetos construídos na Bacia do Rio Uruguai do processo de controle de energia e da eletricidade por parte de empresas nacionais e internacionais. Junto com isso, há também um grande processo de desterritorialização das famílias que historicamente viveram nas barrancas do Rio Uruguai e vivem até hoje.”

O prefeito de Barra do Guarita (RS), Rodrigo Locatteli, também avaliou que é fundamental que a população seja consultada sobre a retomada dos projetos, pois a preocupação é muito grande diante dos impactos causados, como a destruição do rio e da biodiversidade local. “O município sempre se manifestou contra a construção das barragens. Já temos a experiencia de Foz do Chapecó, com relatos dos pescadores sobre a diminuição dos peixes, como ressaltou a Tereza”.  Locatteli também denunciou a redução dos investimentos públicos em infraestrutura na região devido à ameaça da construção da Barragem de Itapiranga, no Rio Uruguai.  Roland Schatz, prefeito de Garruchos, por sua vez, afirmou que o município anseia por obras de infraestrutura, com destaque para o acesso asfáltico, que estão paralisadas devido à ameaça das barragens. “O que nos preocupa são os nossos pescadores e pequenos agricultores. Se a obra sair, o governo tem que dar garantias de que maneira vamos proceder com nosso povo, que devem ter seus direitos garantidos”, alertou. Schatz fez um apelo para que haja uma definição sobre o futuro do projeto, rompendo com a incerteza e possibilitando a busca por investimentos. O gestor também afirmou que é necessário o acesso pleno à informação, para auxiliar os gestores no posicionamento acerca do empreendimento.

O impacto para a biodiversidade e o turismo

Angelita Bomm dos Santos, Secretária de Turismo de Derrubadas (RS), pontua que o Parque Estadual do Turvo e o Salto do Yucumã são de grande importância para o turismo regional. “Se isso acabar, a consequência será sentida por toda uma região. Além da questão do desenvolvimento, temos carinho e amor pelo Parque, que nos pertence e nós pertencemos a ele.” Em 2020, o Parque recebeu visitantes de 21 países e de diversas regiões do Brasil, o que demonstra a sua importância. Atualmente, a visibilidade Salto do Yucumã, que é a maior queda longitudinal do mundo, já é afetada pela Foz do Chapecó. Conforme apontado por Marco Azevedo, pesquisador do Museu de Ciências da Fundação Zoobotânica, há pelo menos três espécies ameaçadas de extinção que serão afetadas diretamente pela construção das barragens, dentre elas o dourado e a piracanjuba, cuja distribuição no Rio Grande do Sul está restrita  região do Turvo. “Os impactos vão além da barreira física, afetando o ambiente de corredeira e a dinâmica de cheias do rio, que, em última análise, é o que impulsiona a reprodução dos peixes no ambiente.” Azevedo observou que o setor elétrico não tem participado das discussões em torno do tema e fez um questionamento: “o Rio Grande do Sul quer extinguir sua biodiversidade em prol do setor elétrico”? O pesquisador concluiu sua fala afirmando que o estado deve repensar a forma como procede com os licenciamentos ambientais, pensando no interesse coletivo.

Ao final da audiência, o deputado Jeferson apresentou os seguintes encaminhamentos: entrar em contato com o governo argentino, por meio da Mesa Provincial “No a Las Represas”, para averiguar como estão as discussões acerca dos impactos do complexo binacional de hidrelétricas. Solicitar parceria com a Comissão de Assuntos do Mercosul da ALRS; enviar os estudos e fundamentações apresentadas durante a audiência para a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da ALRS, através do mandato do senador Paim e demais parlamentares que tenham interesse na pauta e a entrega de documento ao governo Eduardo Leite e à SEMA, cobrando a retomada dos decretos estaduais que instituíam as políticas de direitos aos atingidos e de desenvolvimento das regiões afetadas pelas hidrelétricas.

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