Evidências comuns em rompimentos de barragens e apagões no Brasil e nos Estados Unidos

Os desastres ambientais de grandes proporções que têm acontecido nos dois países evidenciam as consequências de um modelo de atuação comum dos agentes privados de mercado.

Em abril de 2021, um local de armazenamento de mina de fosfato ameaçou lixiviar material radioativo para a Baía de Tampa, na Flórida. Algumas semanas antes, uma barragem de uma mina de ouro no Brasil rompeu, contaminando o local de abastecimento de água potável de 4.000 pessoas no estado do Maranhão. Em fevereiro e março, moradores do Mississippi e Texas (E.U.A.) enfrentaram apagões de energia e falta de água potável. Em novembro de 2020, no Brasil, o estado do Amapá sofreu com falta de energia elétrica por 3 semanas, o que afetou 765 mil pessoas, durante a pandemia da Covid-19. No Brasil, desde o ano 2000, já ocorreram pelo menos 12 rompimentos de barragens, o que significa a média de um rompimento de barragem a cada 2 anos. No estado de Minas Gerais, o segundo em produção de minério de ferro do país, foram 7 rompimentos de barragens de rejeito de mineração em 13 anos.

Córrego do Feijão em Brumadinho (MG) coberto por lama depois do rompimento da barragem da Vale. Foto: Bruno Ferrari

À primeira vista, esses acontecimentos parecem não estar relacionados. Aprofundando a análise um pouco mais, no entanto, podemos constatar algumas evidências comuns nestes fatos da realidade. O colapso de barragens, desastres da mineração, a falta de água e os apagões de energia não são apenas desastres “naturais”, mas resultados causados pela ação dos agentes privados do mercado. Essas situações são o resultado de centenas de anos de imperialismo e colonialismo seguidos por décadas de reformas neoliberais com privatizações, especulação financeira desenfreada e falta de responsabilização e regulamentação por parte das empresas e dos governos.

Finanças globais e mineração

Globalmente, 85% do fosfato extraído é usado para fazer fertilizantes. O estado americano da Flórida atualmente é responsável por 25% da produção mundial de fosfato. Uma das maiores fábricas de fertilizantes do mundo existe em Polk County, Flórida, sendo de propriedade da Mosaic, a maior empresa privada de fosfato do mundo. Mesmo diante da oposição popular em massa, o governo local aprovou a expansão das operações das usinas. Uma das razões para essa oposição é que as minas de fosfato e as fábricas de fertilizantes produzem um resíduo denominado gesso fosfatado, que é radioativo. Enquanto a indústria de fosfato continua fazendo lobby para usar esses resíduos para construção e material de construção de estradas, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) não recomenda esse uso, porque considera o material perigoso para a saúde. Então, a indústria o armazena. Um desses locais de armazenamento de resíduos, Piney Point virou notícia internacional no início de abril, quando o reservatório de armazenamento estava em risco de colapso e equipes de trabalho bombearam milhões de galões dessa água contaminada (radioativa) na Baía de Tampa, uma área ambientalmente precária.

Como relatou um artigo no The Guardian, o local tem uma longa história de poluição, mesmo que os proprietários do local tenham mudado ao longo dos anos. O governador da Flórida, Rick DeSantis, anunciou que está fazendo um planejamento para fechar Piney Point e limpar a área atingida pelo empreendimento e suas consequências.  O governo quer ainda responsabilizar a empresa HRK Holdings – que agora é proprietária do local. A população, porém, tem dúvidas se esse planejamento será de fato cumprido pelo governo. A HRK Holdings possui acionistas em comum com a empresa canadense Xemplar, que explora uma mina de urânio na Namíbia.

Água, energia e mineração possuem relações estreitas na produção e na propriedade controladora. Os fundos financeiros internacionais BlackRock e Vanguard, por exemplo, detém ações da Equinox Gold, com sede no Canadá, e também da Vale SA. Blackstone detém ações (é o segundo maior titular) da Energy Transfer (Texas). O mesmo sistema financeiro e os mesmos atores corporativos estão em jogo: falta de medidas internacionais para responsabilizar as corporações e mecanismos financeiros que permitem que as empresas de fachada sejam essencialmente apátridas e não prestem contas a ninguém, o que torna difícil a tarefa de responsabilizá-las.

O Brasil é o segundo produtor de minério de ferro do mundo e o principal comprador do Brasil é a China. O minério de ferro foi o terceiro produto mais exportado pelo Brasil em 2019.  Os dois estados com maior produção de minério de ferro no país são Pará e Minas Gerais. Ambos os estados sofreram com rompimentos recentes de barragens de rejeito de mineração. A empresa responsável pelos últimos dois rompimentos de barragem em Minas Gerais é a Vale. A Vale é a segunda maior mineradora do cenário internacional. Tem sede no Brasil, mas seu capital é negociado nas principais bolsas de valores do mundo. Mais de 45% dos acionistas da Vale são internacionais, incluindo algumas das maiores empresas de gestão de investimentos do mundo com sede nos Estados Unidos. Por exemplo, BlackRock e Capital Group detém cerca de 5 por cento das ações cada uma na Vale e o grupo Vanguard também possui ações na Vale. A Vale faz uma manobra chamada de triangulação que é realizada por várias outras empresas também, como forma de diminuir o pagamento de impostos. Ela vende sua produção de minério de ferro no Brasil para sua subsidiária na Suíça a preços mais baixos que os de mercado e com isso paga baixos valores de impostos no Brasil. Depois, a Vale Suíça revende o minério para a China ao preço de mercado. Com essa manobra , a Vale deixou de pagar ao Estado brasileiro US$ 12,4 bilhões de 2009 a 2015.  

A exploração de ouro pela mineradora Aurizona Mineração, que integra o grupo canadense Equinox Gold, no Maranhão existe desde 2010, mas as pesquisas minerais nessa região datam da década de 1970 e o garimpo de ouro existe ali desde o século XIX. O nome Aurizona que é também o nome da comunidade onde há a exploração do ouro, significa “zona do ouro”. A empresa já registra uma recorrência de problemas em suas operações. Em 2014 houve vazamento de material da área de lavra que provocou mortandade de peixes. Em 2018, houve deslizamento de pilha de estéril, bloqueando estradas e atingindo uma região de mangue e agora em março de 2021 ocorreu o rompimento da barragem que atingiu o lago Juiz de Fora. Este lago é usado pela população da comunidade de Aurizona para seu abastecimento de água. Com o rompimento da barragem, as pessoas da comunidade estão sem acesso à água. As cerca de 4 mil pessoas conseguiram que a empresa fornecesse água a elas, mas a água tem vindo com cheiro e coloração fortes. A Equinox Gold é fruto da fusão de várias empresas canadenses como Luna Gold e Trek Mining e ela também possui relações com a Pan American Silver, através do presidente em comum de ambas as empresas.

Esses rompimentos são intrínsecos ao modelo de mineração vigente. Em plena crise do capitalismo, para recuperar e elevar suas taxas de lucratividade, as empresas aumentam a produção de minério quando o valor do minério de ferro no mercado internacional sofre queda e reduzem gastos com a manutenção das estruturas de contenção de rejeitos. As empresas gastam ainda menos com segurança, para garantir a continuidade dos lucros exorbitantes. Assim, com o aumento da produção de minério, há também o aumento da produção de rejeitos e o colapso das barragens. Com isso, ao fim de cada ciclo de aumento e queda do valor internacional do ferro, há a grande probabilidade de um novo desastre.  Todas as empresas responsáveis pelos desastres são empresas privadas, mas é a população e o meio ambiente que sofrem os danos. As empresas continuam tendo aumento de seus lucros, como é o caso da Vale, que em 2 anos após o rompimento de sua barragem em Brumadinho, sofreu valorização de 119,8% em suas ações.

Os fracassos da privatização e desregulamentação

Em fevereiro de 2021, uma tempestade de inverno varreu o Texas, deixando 4 milhões de pessoas sem energia em um dos períodos mais frios da história recente. Este não foi apenas um desastre “natural”. O estado do Texas tem um mercado desregulamentado, cujos defensores prometeram fornecer energia mais confiável e barata. No entanto, em vez disso, desde as décadas de 2004, as pessoas na verdade pagaram US $ 28 bilhões a mais. Texas é o único estado não conectado às redes em outros estados. Os apagões no Texas foram causados pela desregulamentação e privatização – o sistema internacional do neoliberalismo, que é promovido como uma “solução” para os males do mundo, quando na verdade os perpetrou. Enquanto as pessoas sofreram – e algumas até morreram – durante a tempestade de inverno, os executivos das empresas de combustíveis fósseis lucraram.  E as tarifas, em pleno apagão, tornaram-se as mais caras, chegando a U$ 19 mil/MWh nestes locais, um paraíso para o capital financeiro que controla e especula estes negócios.

Embora a tempestade de inverno e a queda de energia no Texas recebessem atenção nacional e internacional, menos atenção foi atraída para os efeitos da mesma frente de inverno no Mississippi. Devido a quedas de energia, na capital do Mississippi, Jackson, os moradores ficaram sem água por um mês inteiro. Mais de 82% dos residentes de Jackson são negros, e o racismo e o desinvestimento do governo levaram a este momento. Novamente: um desastre “natural” não é a raiz do problema. Em vez disso, uma crise de infraestrutura alimentada por décadas de desregulamentação, austeridade e reformas neoliberais, junto com o racismo histórico e estrutural, são a causa raiz. Mais de US $ 743 bilhões são necessários para reparar a infraestrutura hídrica obsoleta nos Estados Unidos. O presidente Biden propôs um pacote de infraestrutura de US $ 2 trilhões para eliminar os canos de chumbo e melhorar “a saúde das crianças e das comunidades negras de nosso país”, de acordo com o site da Casa Branca.  Embora esta seja uma boa notícia, também devemos ser cautelosos esperançosos: há esforços (inclusive por parte dos democratas) para usar este projeto de lei para conceder licença à indústria privada e promover as “parcerias público-privadas”, que vez após vez se provaram desastrosas para o povo, em qualquer país em que ocorram.

Os Estados são cúmplices das empresas nessas violações de direitos, uma vez que são eles os responsáveis por fiscalizar as atividades destas. Mas o Estado sob o domínio da doutrina neoliberal sofre o que chamamos de captura corporativa que é a influência direta que as empresas exercem nas decisões que devem ser tomadas pelo poder público. A captura completa das Agencias Reguladoras é a prova disso. Isso ocorre porque na sociedade atual as grandes empresas têm mais poder que os Estados e negociam com esses o que eles podem deixar de ganhar se agirem contra os interesses das empresas. No Brasil, os interesses das empresas fazem com o que o Estado não se organize para fiscalizar as barragens. Não há estruturas adequadas e nem disponibilização dos recursos necessários para a área de fiscalização. A Agencia Nacional de Mineração (ANM) deve fiscalizar 816 barragens mas possui apenas um terço dos técnicos necessários para executar as vistorias nas estruturas e seu orçamento vem diminuindo a cada ano. No Brasil hoje são mais de 45 barragens em risco extremo, sem estabilidade atestada. Destas, 42 estão no estado de Minas Gerais. Nos EUA, a regulamentação de segurança de barragens também é deixada para estados individuais e não é regulamentada federalmente.

No Brasil em 2001, a população sofreu com um grande racionamento de energia elétrica em todo o país. Esse apagão, como foi chamado, foi resultado do modelo neoliberal que foi implementado no país nos anos anteriores e que privatizou as empresas de energia, assim como, reduziu o planejamento e o investimento do estado para o setor elétrico. O resultado foi o colapso nacional. Em 2020, o estado do Amapá sofreu com a falta de energia elétrica. A empresa responsável era a espanhola Isolux que mudou de nome em 2019, para Gemini Energy e não conseguiu encontrar uma solução para o problema da falta de energia. Uma estrutura que deveria ter vitalidade por 30 anos, colapsou em menos de 10 anos de controle privado.  Quem agiu para resolver a crise energética no Amapá foi a Eletrobrás, empresa estatal que o governo Bolsonaro quer privatizar. Sob essa mesma política neoliberal, o estado de São Paulo, em 2014, sofreu com a falta de água devido à lógica da taxa de lucratividade máxima, no menos tempo e do gasto mínimo para garantir a qualidade do serviço. Não é só falta de planejamento e de investimentos do governo no setor, é a essência da lógica privada nos serviços públicos. Enquanto a população racionava água em São Paulo, cerca de 500 grupos privados eram privilegiados com baixos preços para a água, pela Companhia de Saneamento do estado de São Paulo (Sabesp), entre eles indústrias, shoppings, condomínios e grandes hotéis. No Brasil, o setor de água e saneamento é formado em sua maioria por empresas estatais (90%), mas a privatização se avizinha com o aumento das parcerias público- privadas nessa área.  

As fontes de energia elétrica no Brasil são em sua maioria, 64%, de fonte hídrica. Essa fonte de energia é uma das que apresenta menor custo de produção, mas o preço pago pelo consumidor brasileiro é um dos mais altos do mundo.  As altas tarifas de água e energia é outra característica e consequência da privatização. Para piorar o governo Bolsonaro pretende privatizar o que resta, efetivar a privatização da Eletrobrás que é a empresa estatal de energia do país. Hoje as hidrelétricas da Eletrobrás vendem energia a R$ 65,00 por Megawatt hora. Com a privatização da empresa é possível que esse valor chegue a R$ 250,00 por Megawatt hora, seguindo as regras dos preços de mercado. Esse aumento no valor de venda da energia será cobrado nas contas dos consumidores finais.

Todas essas situações mostram como bens naturais que deveriam estar a serviço da população estão na verdade sendo apropriados pelas empresas privadas e sendo usados como mercadoria para geração de lucro. Apagões, desastres na mineração, falta de água, entre outros, não são eventos naturais. Todas essas situações relacionadas à água, à energia e à mineração têm como origem o controle privado das empresas, formado pelo capital financeiro que dita quais são as prioridades dessas empresas: apresentar alta lucratividade para seus acionistas, altos rendimentos para os bancos e grupos financeiros que investem nelas, sendo que muitos desses grupos são comuns entre as empresas. Quem sofre com a prioridade de lucro das empresas é a população mais pobre, principalmente, porque precisa pagar altas tarifas, acessar serviços de baixa qualidade e serviços executados sem segurança, que atingem as áreas ao redor e provocam contaminação ambiental. Os governos aceitam essas situações, não conseguem fiscalizar e punir, por estarem orientados por uma política neoliberal que estimula a relação corrupta entre estados e empresas. É o Estado sendo capturado pelo capital para servir às empresas, como um agente a serviço da classe dominante.

Ruim para a maioria do povo, esta realidade é comum nos Estados Unidos e no Brasil—e no mundo. Cabe, então, aos atingidos por essa realidade se organizarem coletivamente para enfrentar todo esse aparato que se coloca para destruir seus modos de vida em nome do capital.

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