Atingidos pelo crime da Samarco (VALE\BHP) na Bacia do Rio Doce exigem direito à voz no processo de reparação

Após quase seis anos do crime de Mariana (MG), mineradoras tentam repactuação com o Governo de Minas Gerais, excluindo totalmente os atingidos da participação no acordo.

Distrito de Bento Rodrigues em Mariana (MG) depois da passagem da lama da Barragem do Fundão. Foto: Guilherme Weimann/ MAB

Há cinco anos e meio, o maior crime socioambiental da história do país ocorria em Mariana (MG). Rejeitos da mineradora Samarco, operada pela Vale e BHP Billiton, se espalharam por todo o Rio Doce e litoral capixaba. Desde então, homens e mulheres, pescadores, agricultores e comerciantes se viram imersos em uma teia de interesses e burocracia alheia aos seus territórios para a solução dos problemas criados pelas mineradoras.

Nesse período, nos organizamos em diferentes iniciativas: algumas que já existiam nos territórios, outras que passaram a existir: movimentos sociais, fóruns, colônias e associações de pescadores, associações de moradores, de comerciantes, de artesãos, etc. Organizamos, inclusive, Comissões Locais de Atingidos, por toda a bacia do Rio Doce.

Por meio do trabalho dedicado dessas organizações, realizamos reuniões locais para levar informações confiáveis e levantar demandas, participamos de encontros do Comitê Interfederativo (CIF), de Câmaras Técnicas e de agendas com instituições de justiça.

Neste longo processo, alcançamos o reconhecimento das nossas comunidades que, a duras penas, sempre buscaram um acesso efetivo à reparação dos seus direitos violados, seja participando de reuniões, organizando as demandas dos atingidos ou protestando e nos manifestando publicamente. Este reconhecimento não tem preço e é em respeito a ele que apresentamos as seguintes considerações:

a) Nestes mais cinco anos, muitas críticas foram feitas ao método empregado para o pagamento das indenizações. Neste sentido, o Sistema Simplificado instituído pela 12ª Vara Federal é fruto de uma luta feita por milhares de pessoas desde o rompimento. As decisões judiciais divulgadas desde agosto de 2020 permitiram que cerca de 11 mil pessoas tenham algum recurso para enfrentar os desafios que o crime nos impõe. Ele é fruto da pressão popular combinada com a atuação das instituições que deram força e base àqueles que, finalmente, tiveram o seu direito a indenização reconhecido.

b)  Por outro lado, é importante ressaltar que a forma de implementação deste sistema não tornou mais simples o acesso ao direito. Infelizmente, assistimos nos nossos territórios o direito à indenização justa ser transformado em um verdadeiro “mercado da indenização”, onde advogados particulares se organizam para captar clientes disputando um protagonismo no processo reparatório. Desta forma, não só rivalizam com as organizações já existentes, como desorganizam todo o trabalho realizado, registrado e reconhecido dentro de todo o processo judicial do Rio Doce durante vários anos.

c) Qual escolha existe, frente ao assédio dos advogados, em um contexto de pandemia e aumento da pobreza em um país com crescente desemprego, em uma região que perdeu o Rio Doce como fonte de trabalho seguro, pois até o auxílio emergencial dos atingidos está sendo cortado?

Apesar da propaganda de “facultativa”, a adesão ao novo sistema não é exatamente opcional. Os escritórios do Programa de Indenização Mediada (PIM) da Fundação Renova não estão funcionando há meses e não oferecem atendimento remoto. Ou esperamos o PIM reabrir ou aderimos agora ao Novel, assinamos a quitação final e ficamos submetidos a este “comércio de indenizações” instalado na Bacia do Rio Doce.

Tudo isso em um contexto de pandemia, em que as Comissões originais, em respeito às autoridades de saúde, não realizam presencialmente reuniões e assembleias. Neste sentido, a ausência de reuniões abertas na comunidade, seja para discutir as matrizes de danos apresentadas pelos advogados no NOVEL, seja uma possível “repactuação no Rio Doce” só consolidam o que já é uma tradição: falta de acesso à informação nas comunidades e a ausência de participação qualificada nos processos decisórios.

d) Sobre o caminho percorrido pelas instituições abaixo assinadas, há outra questão que precisa ser afirmada, em respeito à participação das nossas comunidades no processo de reparação: além das discussões sobre indenizações individuais, participamos ativamente nos processos conduzidos pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos (FBDH) e pela Força Tarefa do Ministério Público Federal, que em 2018 e 2019 realizaram dezenas de reuniões nos territórios que contribuíram com a consolidação das nossas Comissões. A atuação do FBDH também foi importante no processo, que consideramos legítimo e idôneo, de escolha das entidades que prestariam assessorias técnicas independentes às atingidas e atingidos nos territórios.

Indígena observa destruição no Rio Gualaxo Norte, subafluente do Rio Doce. Foto: Lidiane Poncyano

Após mais de dois anos, todo este processo foi paralisado quando a Vale e a BHP Billiton interromperam as negociações e judicializaram o tema, transformando-o no Eixo 10 do processo conduzido pelo juiz Mário de Paulo Júnior, substituto da 12ª Vara Federal, em Belo Horizonte. Infelizmente, passados mais de um ano, o juiz ainda não julgou este eixo e as comunidades ainda aguardam que o imenso trabalho feito em 2018 e 2019 tenham alguma resposta e consideração.

A Justiça vai decidir sobre a assessoria técnica independente? Por que os atingidos e atingidas do rompimento em Brumadinho já tem assessoria há quase um ano com centenas de técnicos em campo e nós ainda não temos nenhum? Se houvesse equipes atuando por território seria muito mais simples organizar a participação dos atingidos, passar informações seguras para as comunidades, ter dados mais concretos sobre qualidade da água, do solo e do ar, uma matriz de danos adaptada a cada realidade, etc. Os conflitos que hoje enfrentamos seriam bem menores.

e) Sem assessorias, o novo processo indenizatório provocou o fortalecimento ainda maior da Vale e da Fundação Renova sobre as comunidades atingidas. O que aconteceu com a Comissão de Naque e a forma com que a Fundação tratou a comissão local em janeiro após um protesto em uma reunião, cujo áudio foi divulgado amplamente, é indignante. A manifestação era pelo aperfeiçoamento do novo sistema indenizatório, mas só conseguiram da Fundação Renova ameaças de suspensão do novo sistema em flagrante terrorismo econômico.

Reafirmamos que lutar não é crime. Não podemos aceitar esta situação na qual, aproveitando da pandemia e da necessidade das famílias atingidas, as mineradoras rebaixem direitos e criem esta situação de tanta repressão, conflitos, constrangimentos e humilhações.

f) Por fim, não abrimos mão de defender a postura correta das Instituições de Justiça, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas, que seguem sendo constantemente atacados por fake news nas redes sociais, assim como todos nós atingidos e atingidas, que há cinco anos lutamos por justiça. Defendemos e afirmamos como correto o processo conduzido pela Força Tarefa, o qual acompanhamos conjuntamente em nossas comunidades, desde a formação das comissões originais e das escolhas das assessorias técnicas em 2018 e 2019. Também apoiamos os acertados Embargos de Declaração sobre as ações da 12° Vara em 2020 e o recente pedido de suspeição do juiz, que tem encontrado amplo apoio na classe jurídica brasileira. As instituições de Justiça que tem defendido a legalidade não podem ser atacadas por estarem cumprindo o papel que lhes cabe nos processos acordados, no qual são os legítimos fiadores.

Reafirmamos nosso compromisso com a vida dos atingidos, a saúde dos nossos territórios e com a reparação integral dos danos. Para isso, não abrimos mãos das entidades escolhidas e nunca contratadas para a assessoria técnica na bacia do Rio Doce e de todo o necessário para alcançarmos a continuidade das ações emergenciais que garantam alimentação para as famílias que perderam renda, abastecimento e garantia da qualidade da água oferecida às comunidades, atenção à saúde dos atingidos e caminhos para uma verdadeira recuperação ambiental no longo prazo, que possibilite a retomada gradual e sustentável do trabalho e da renda para todas as famílias.

Neste sentido, é fundamental no processo de “repactuação Rio Doce” anunciado pela imprensa e que tem excluído totalmente os atingidos da participação, que estas considerações sejam avaliadas e incluídas nas negociações a partir das seguintes pautas principais:  

  • Programa de transferência de renda: recurso destinado a combater a vulnerabilidade social e garantir as condições das famílias atingidas até a reparação integral.
  • Fundo para o Desenvolvimento das Regiões Atingidas por Barragens: recurso para investir no pagamento da dívida social com os atingidos\as em outras situações de violações de direitos.
  • Indenização Justa com o fim da quitação final e aperfeiçoamento do NOVEL com garantia do funcionamento de um modelo que considere uma matriz de danos feita com a participação das comunidades respeitando todas as suas questões próprias e potencialidades.
  • Investimento em programas para garantir condições de trabalho na agropecuária, na cadeia da pesca e em outras atividades garantindo atenção especial às mulheres e pessoas negras por meio de um fundo para a calha do rio Doce e o litoral capixaba.
  • Assessoria técnica independente com autonomia e capacidade para direcionar demandas, além de contribuir na elaboração e acompanhamento de projetos efetivos de reparação em cada cidade atingida garantindo a participação informada das famílias.
  • Instrumentos de participação popular que permitam o real envolvimento dos atingidos\as decentralizando as decisões na Justiça Federal e fortalecendo os atingidos organizados em iniciativas coletivas com o devido acompanhamento das assessorias técnicas.

Por isto, seguimos lutando.

Bacia do rio Doce, maio de 2021 – 5 anos e meio do crime da Samarco (Vale\BHP Billiton)

Comissão Local organizada no processo do Fundo Brasil em Resplendor

Comissão Local organizada no processo do Fundo Brasil em Conselheiro Pena

Comissão Local organizada no processo do Fundo Brasil de Governador Valadares

Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Periquito

Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

Associação Beira rio Sustentável – Conselheiro Pena

Associação de Pescadores de Conselheiro Pena (ASPEC)

Comissão Local organizada no processo do Fundo Brasil em Sem Peixe 

Comissão de Atingidos e Atingidas de Barra Longa

Comissão dos Atingidos e Atingidas de Plautino Soares (Sobrália)

Água limpa, comida na mesa, trabalho e participação!                                              Este é o acordo que queremos!

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