Como a saúde no Amazonas colapsou? Entrevista com Luciana Ramos

Amazonas despontou como um dos estados brasileiros com o maior número de casos de Covid-19

Valas coletivas são abertas em cemitério público de Manaus (AM). Foto: Michel Dantas/AFP

Na última semana, o Amazonas despontou como um dos estados brasileiros com o maior número de casos de Covid-19. Com um acelerado avanço da doença, o estado registra 6.683 casos e 548 óbitos. Com a ocupação de quase 100% dos leitos de UTI e diante de um colapso funerário, a capital Manaus, onde concentram-se a maioria dos casos, adotou a prática de abrir valas comuns para enterrar as vítimas da doença.

Para tentar entender como a situação chegou a este ponto, entrevistamos a professora universitária e advogada popular Luciana de Souza Ramos, nascida em Manaus e moradora da cidade. Para Luciana, uma série de fatores contribuíram para essa crise, que encontra suas raízes na política de privatização da saúde e do saneamento nos anos 90 e agrava-se na atual conjuntura de retrocessos.

Luciana também é membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) e do Coletivo Marietta Baderna e Luísa Mahin. É pós-doutoranda no Colégio Latino-americano de Altos Estudos Mundiais da Faculdade de Direito da UNB, doutora e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Faculdade de Direito da UNB.

Confia a seguir a entrevista:

1. Recebemos com espanto as notícias sobre o rápido aumento no número de casos de Covid-19 e o colapso do sistema de saúde no Amazonas. O que você acha que pode ter contribuído para a situação chegar a este ponto?

Três pontos principais contribuem para a situação de caos que vivemos no Estado.

Primeiro, a política nacional de privatização e terceirização de setores da saúde e saneamento básico a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso. A privatização da companhia de saneamento (COSAMA) aconteceu em 1999. Desde lá, inúmeras empresas foram se revezando na administração do saneamento da cidade, culminando hoje com a AEGEA, que é a maior companhia privada de saneamento do Brasil, com 49 concessões. São 20 anos de privatização e Manaus é hoje a quinta cidade com piores indicadores de saneamento básico do Brasil, que é um dos componentes para aferição da saúde da população. Desta forma, a COVID-19 encontra um ambiente perfeito para proliferar-se na cidade, seja pela não oferta de água ou água inadequada, seja pelo sistema de esgoto precário, principalmente nas periferias.

No que se refere à privatização e terceirização dos serviços de saúde, desde os governos Eduardo Braga, setores de serviço da saúde passaram a ser executados por empresas privadas, sob o fundamento de economia para o Estado, bem como pela melhoria no atendimento. De técnicos de enfermagem a anestesistas, praticamente todos os serviços são praticados por particulares contratados por empresas de terceirização-quarteirização e cooperativas. O principal problema que vimos aqui é a precarização das relações de trabalho, o superfaturamento na contratação dessas empresas, e o atraso no pagamento dos trabalhadores desta área. Com isso, desde 2017, inúmeras greves foram feitas pelos servidores para recebimento dos salários. No último dia 27, houve nova paralisação de servidores do hospital 28 de agosto, o maior hospital de urgência do Amazonas, porque além da falta de EPI’s e condições dignas de trabalho, os servidores estão com os salários atrasados. Importante destacar que 20 funcionários que participaram das greves foram dispensados por terem feito a manifestação.

Um segundo ponto são os crimes de desvio de verba pública na área da saúde: como reflexo dessa política neoliberal de sucateamento do SUS. Para justificar uma privatização total dos serviços, cria-se um vasto espaço para o desvio de verba pública, bem como de superfaturamento dos serviços e produtos nesta área. Desde 2016 vivenciamos diversas investigações criminais por desvio de verba da saúde e superfaturamento, que iniciou com a Operação Maus Caminhos e que desmontou a política de saúde no estado.

O terceiro ponto é a ação genocida e a falta de compromisso do Governo Federal, principalmente do presidente da República em construir soluções para o combate à pandemia. Entendemos que muitas pessoas, principalmente a classe trabalhadora precarizada dos serviços essenciais, na sua maioria negros e em situação de maior vulnerabilidade social, não tem o direito de ficar em casa, de usar as máscaras, de não ficar em aglomeração. E vimos a ausência de políticas específicas e reais para essas populações. O auxílio emergencial não leva em conta a diversidade social do nosso país, nem as desigualdades sociais, de acesso a internet, de educação suficiente para compreender os mecanismos de acesso ao auxílio, dentre outras. Povos e comunidades tradicionais não têm qualquer amparo e políticas específicas voltadas a eles, reflexo inclusive da desigualdade que temos nosso país, que vem a tona nesse caos e que fragiliza ainda mais essas populações.

2. Como você avalia a postura e as medidas do governo federal para o enfrentamento da pandemia?

Insuficiente, principalmente após as mudanças ocorridas na chefia do Ministério da Saúde, muito embora saibamos dos compromissos do antigo ministro de privatização da saúde, mas que diante da pandemia teve uma postura mais alinhada a atender as demandas regionais.

Outra medida que tem fortalecido a expansão da contaminação na Amazônia é a política permissiva de grilagem em terras indígenas, autorizada por este governo, além de todo o discurso do presidente para ocupação ilegal e inconstitucional de terras indígenas, seja por grileiros, seja por madereiros, pecuaristas e mineradores (legais e ilegais). A invasão a essas terras tem levado o vírus para populações indígenas que são vulneráveis imunologicamente e sem estrutura de saúde adequada. Com o sucateamento das estruturas de fiscalização, a situação toma proporções alarmantes na região. A situação indígena no estado é alarmante, pois os indígenas estão morrendo e não há qualquer registro destas mortes, principalmente dos indígenas que vivem perto ou nos centros urbanos.

Outro ponto sensível, no que tange à postura do governo federal, foi o aniquilamento do Mais Médicos, encerrando a prestação de saúde e praticamente expulsando os médicos que prestavam atendimento, atenção básica, nos lugares mais recônditos da região, que hoje se veem desassistidos, agravando muito a situação da pandemia no estado, cujo principal problema é falta de recursos humanos, principalmente médicos para o atendimento.

Fora toda a política de ódio e de caos fomentada pelo presidente da República que, em vez de trabalhar conjuntamente com todos os poderes e com toda a população brasileira, cria fatos políticos de cisão, de caos e de morte.

3. E o governo do estado, tem adotado medidas suficientes?

O governo do estado, sabendo de todo o sucateamento pelo qual o sistema de saúde vinha passando, e diante da não obediência da população em relação às orientações para evitar a propagação do vírus, demorou a tomar medidas concretas e específicas da nossa região. Três pontos são muito sensíveis aqui: falta de leitos e um hospital de campanha forte e com atuação completa, falta de médicos para atuarem na cidade e no interior, bem como a falta de recursos e atenção médica para os municípios do interior, que não fazem parte da região metropolitana.

Ao invés de fortalecer hospitais públicos ou ao menos sem fins lucrativos, o governo contratou uma estrutura de hospital privado por um valor exorbitante, que fez com que o Tribunal de Contas do estado, bem como o Ministério Público, ingressassem com demanda contra o estado. Só para termos uma ideia do erro do governo do estado, o Hospital Delphina Aziz, público, com capacidade para 272 leitos de internação, hoje disponibiliza só 100 leitos segundo a Secretaria de Saúde.

O estado tem recebido materiais como EPI’s, respiradores do governo federal, mas sem disponibilização de leitos e sem médicos não há a efetividade na prestação de saúde a população. A falta de médicos na capital e no interior tem sido um grande problema aqui, apesar do envio de profissionais, pelo Governo Federal. Os profissionais da saúde estão trabalhando em situações desumanas, com a falta de EPI’s e de estrutura para trabalhar, sem os salários, em alguns setores, que ainda estão sendo feitos via terceirização, e sem auxílio psicológico para lidar com a pior das situações que uma pessoa pode passar que é de ter que escolher quem vive e quem morre.

Além disso, a situação nas UPAS também entrou em colapso, e hoje quem precisa de atendimento de urgência, seja por COVID-19, seja por qualquer outra enfermidade, não tem onde ser atendido.

Diante deste cenário, vimos o governo do estado suplicando ajuda do governo federal, sem muito êxito. Recentemente, o prefeito da cidade de Manaus, enviou uma carta para vários líderes internacionais pedindo ajuda para Amazônia. A Assembleia Legislativa do estado, dia 20 de abril, enviou uma solicitação de Intervenção Federal na saúde do estado.

Por tudo que já dissemos, era uma tragédia anunciada o que aconteceria no sistema de saúde do estado. Contudo, a falta de uma liderança, de ações conjuntas entre os entes federados e entre o Executivo e Legislativo agrava ainda mais nossa situação e nos deixa à deriva neste rio de irresponsabilidades e de políticas coloniais.

4. A região amazônica conta com uma histórica precariedade de políticas públicas e infraestrutura sanitária. De que forma isso agrava as condições de sobrevivência da população nesse momento?

A Amazônia nunca foi pensada como uma região rica, pela sua diversidade social, ambiental e étnico-racial. A Amazônia sempre foi vista como uma grande área inóspita que não tinha habitantes e que deveria ser explorada. Partindo desse pressuposto, todas as parcas políticas pensadas para região passaram por essa lógica. O principal exemplo que temos foi a criação da Zona Franca de Manaus, em 1967, durante a ditadura civil-militar, e que tinha como objetivo trazer “desenvolvimento” para o estado e possibilitar o controle de fronteiras. Mais recentemente, temos como exemplo, toda a política de mitigação às legislações ambientais e territoriais, as quais promovem ocupação, grilagem, desmatamento e exploração da Amazônia. Barragens, hidrovias, pastos para gado, exploração mineral, todas fomentadas por políticas vindas do Governo Federal.

Agrava a situação também o fato de as políticas públicas pensadas a partir dos gabinetes em Brasília não levarem em consideração as peculiaridades da Amazônia e dos seus povos. É importante entendermos um pouco a realidade do Amazonas, e de muitos estados na região norte, que têm um território gigantesco, cujas estradas são os rios, e cuja relação com o meio ambiente é a vida e essência da população que aqui vive, principalmente os povos e comunidades tradicionais.

Enquanto o Estado brasileiro olhar para Amazônia como esse não-lugar, e que portanto, pode ser explorado e pensado de qualquer forma, vivenciaremos abismos gigantescos na prestação de políticas públicas, principalmente as de saúde, que aqui entendemos conjuntamente saúde, assistência social, saneamento básico e alimentação adequada.

5. Uma grande preocupação é com a disseminação da doença entre os povos indígenas, que pode levar a um alto grau de mortalidade. De acordo com a Sesai, até 28 de abril, de 92 casos confirmados de Covid-19 entre os indígenas, 83 estão no Amazonas. Como vê essa situação? É possível relacionar isso a outras ofensivas a esses povos, como invasões a seus territórios?

Como dito acima, a questão indígena, quilombola, ribeirinha é gravíssima não só no Amazonas, mas creio em todos os estados da região norte. E ai é importante apresentar aos brasileiros outros povos tradicionais que vivem na Amazônia, como os quilombolas e os ribeirinhos. Conhecido majoritariamente pela sua identidade indígena, inclusive por termos a maior população indígena do país, o estado do Amazonas conta com quatro territórios reconhecidos como quilombolas, sendo um deles, o quilombo do Tambor, em Barreirinha, um dos maiores territórios quilombolas do Brasil. O povo desse quilombo, como outros povos tradicionais da Amazônia, tem sido expulsos de seus territórios, indo para as cidades, onde não encontram atendimento de política pública específico. Para piorar, a FUNAI (indígenas) e a Fundação Palmares (quilombolas e outros povos tradicionais) foram desmontadas e fragilizadas, o que dificulta o atendimento adequado a essa população.

Tão grave como a situação dos povos indígenas brasileiros, na cidade de Manaus, temos a situação delicada dos indígenas migrantes venezuelanos da etnia Warao, que vivem nas ruas de Manaus e se concentram nos semáforos, de onde conseguem algum recurso e que vivem em situações de muita vulnerabilidade.

Outro exemplo é do Quilombo Urbano de São Benedito da Praça 14, cuja principal fonte de renda era a venda de alimentos em bancas, ou seja, a maioria está no trabalho informal, não tem conseguido trabalhar e nem receber o referido auxílio emergencial. Quando tínhamos a política Brasil Quilombola, eles recebiam cestas básicas mensais e atenção específica, contudo, com o encerramento da política, ficaram completamente desassistidos.

Vejam que tudo isso que estamos falando tem a ver com projeto político de sociedade, o qual foi desmontado em quatro anos, pós-impeachment da presidenta Dilma. Por óbvio que não vamos passar a mão na cabeça da presidenta, que fez escolhas neoliberais quando, principalmente, propondo um modelo desenvolvimentista na Amazônia, violou diversos direitos e fragilizou a política de proteção e fiscalização dos territórios Amazônicos, mas ainda tínhamos ali algum espaço de diálogo. Hoje vimos cada vez mais o deslocamento dos povos e comunidades tradicionais para um não-lugar, e em assim sendo, transformando-os em não-sujeitos, o que permite o seu extermínio, a sua invisibilização e a sua subnotificação diante da pandemia.

6. Como a pandemia tem afetado sua rotina?

Sou uma pessoa privilegiada, pois como professora, consigo ficar em casa, dar aulas on-line e garantir o meu sustento, apesar da redução do salário, autorizada pelo governo, em virtude da crise econômica. Por ter uma formação política e religiosa consigo vivenciar a pandemia de forma serena.

7. Como vê os impactos da pandemia sobre a vida das mulheres?

As mulheres são as mais afetadas com tudo o que está acontecendo. Formadas socialmente para serem as cuidadoras, seja como profissão – daí vimos a situação de precariedade das trabalhadoras formais nas áreas de serviços essenciais, principalmente as que estão nas áreas de saúde e serviços gerais – mas também as trabalhadoras do mercado informal. Essas últimas, pela política do isolamento, perderam seus espaços de trabalho, como as ruas. Perderam também suas rendas, e com a dificuldade de acesso às políticas de assistência, se encontram em situações gravíssimas de fome, de vulnerabilidade social total. Há também a situação das mulheres cuidadoras nas suas famílias, que se veem também expostas aos riscos de contágio por estarem ao lado do entes familiares adoecidos.

Há ainda o agravamento da violência doméstica. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e diversas autoridades de saúde nacionais e internacionais têm apontado a casa como um dos ambientes mais seguros em tempos de pandemia do Covid-19 e a foma mais eficaz para conter o avanço do vírus. Entretanto, para muitas mulheres, vítimas de violência doméstica, ficar em casa certamente não é sinônimo de estar protegida.

No início do mês, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), anunciou um aumento de 9% no número de chamadas ao Ligue 180, que recebe denúncias de violência contra a mulher, no mês de março. Ficar em casa virou sinônimo de violência, agressão e opressão para muitas mulheres, que em virtude da pandemia, muitas vezes optam pelo silenciamento com medo de não ter para onde ir.

A perda de renda e o acúmulo das tarefas domésticas também são fatores que agravam muito a situação das mulheres. No que tange às mulheres negras, os riscos e violação de direitos são outros. Como a maioria está em trabalhos mais precarizados, seja os de baixo reconhecimento, seja os da informalidade, precisam muitas vezes se expor ao risco para garantir o sustento da família. A situação das trabalhadoras domésticas, por exemplo, é gravíssima, pois muitas foram dispensadas e consequentemente não têm de onde retirar o sustento; outras que não foram dispensadas, continuam se expondo ao risco sem ter direito de ficar em casa e cuidar da sua saúde e da sua família.

8. No senso comum, pode-se pensar que o vírus é “democrático” e que atinge tanto ricos quanto pobres, tanto brancos quanto negros. Diante de tantas desigualdades no Brasil, ainda é possível acreditar nisso?

Um ponto que é importante diante da pandemia é a necessidade de registro, pelo sexo e étnia-raça, da população infectada e morta pelo COVID-19. Embora saibamos que é importante esse registro para que possamos construir ou reconstruir políticas públicas mais reais.

O vírus é democrático na sua violência universal, mas não é democrático no plano político-social e estamos vivenciando isso, quando o “ficar em casa” é um privilégio e não direito; quando quem tem dinheiro se trata no Hospital Sírio Libânes e quem não tem, morre antes de chegar nas UPAS; quando quem tem dinheiro crema seus entes queridos (procedimento caríssimo e privado) e quem não tem é enterrado em valas comuns. Se o vírus tivesse nascido e se concentrado nas periferias, nos recônditos da Amazônia, estaríamos todos em casa? Seria notícia ou seria uma mera nota informativa?

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