Belo Monte: um rio de direitos violados

A hidrelétrica está para começar suas operações, mas os direitos dos moradores da região atingida não foram contemplados Por Elisa Estronioli e Iury Paulino, militantes do MAB no Xingu, para […]

A hidrelétrica está para começar suas operações, mas os direitos dos moradores da região atingida não foram contemplados

Por Elisa Estronioli e Iury Paulino, militantes do MAB no Xingu, para o blog Amazônia da revista Época

Falta apenas um documento, a licença de operação, para que a hidrelétrica de Belo Monte possa dar início à geração e venda de energia. A Norte Energia, consórcio responsável pelo empreendimento, de maioria do grupo Eletrobrás, solicitou a licença ao IBAMA em fevereiro. O objetivo é iniciar o enchimento do lago em setembro deste ano para começar a gerar energia em novembro. A insistência da empresa em afirmar que tudo está correndo bem, inclusive rebatendo em longas notas reportagens publicadas na imprensa, oculta uma série de violações de direitos que se avolumam em Altamira e região.

Um dos principais gargalos no momento é a remoção forçada das famílias da área do futuro reservatório, principalmente na área urbana de Altamira, que terá parte de seu território alagado de maneira permanente. A conta da Norte Energia, logo de início, já não fechava: foram cadastradas 7.790 famílias, mas a previsão era construir apenas 3.980 casas no dito “reassentamento urbano coletivo”. Centenas de famílias foram excluídas do direito à moradia.

Após um longo processo de luta, a Norte Energia aceitou incluir 400 famílias nessa conta – porém para elas não é oferecida a opção de uma outra casa. As indenizações oferecidas, melhor dizendo, impostas com base na lógica patrimonialista, são insuficientes para garantir uma nova casa na Altamira dos preços hiperinflados pela própria construção da barragem. Em um bairro como o Baixão da Colina, por exemplo, as ofertas de indenização ficam entre R$ 5 mil e R$ 17 mil em média. Às famílias insatisfeitas, a empresa sugere o direito de recorrer na Justiça.

Nos critérios de tratamento com os atingidos, impostos pela empresa e sancionados pelo órgão licenciador sem passar pelo crivo da população, o modo de vida tradicional da região amazônica é amplamente desrespeitado. Por exemplo, muitos ribeirinhos, pescadores e indígenas necessitam casas na cidade – onde têm acesso a serviços públicos e ao comércio – e também na área rural – onde exercem a pesca, o plantio ou o extrativismo. Essas duas casas são necessárias para manutenção de seu modo de vida. No entanto, a Norte Energia só dá direito a essas famílias a uma casa, no limite, as forçando a fazer uma escolha entre ser rural e ser urbano que não faz sentido para esses povos.

A indenização em dinheiro – alternativa menos recomendável – é largamente incentivada tanto no meio urbano quanto rural. Segundo o Ministério Público Federal, dos mais de 400 pescadores proprietários de ilhas no Xingu, apenas um optou pelo reassentamento urbano e dois pelo rural – em área considerada imprópria para pescadores inclusive pelo IBAMA. Para os agricultores atingidos, a empresa tem oferecido carta de crédito no valor de R$ 135 mil reais.  Essa medida esbarra na realidade fundiária da região: não é possível encontrar nas proximidades terras documentadas com esse preço, o que obriga os agricultores a:

a) contraírem dívidas para comprar lotes,
b) emigrarem para áreas distantes em “fundo de travessão” (sem infraestrutura),
c) entrarem no mercado paralelo das cartas de crédito, que funciona, aparentemente, com conivência da empresa.

Dessa maneira, a Norte Energia se desobriga da responsabilidade de construir um verdadeiro reassentamento rural coletivo – reconhecidamente, a opção que melhor atende à reparação dos modos de vida dos atingidos.

A empresa também insiste sempre em afirmar que não vai alagar nenhuma terra indígena, uma verdade que esconde algumas perversidades. A primeira é que indígenas estão sim sendo removidos para dar lugar ao lago: mais de 600 famílias vivem na área que vai alagar e mal são reconhecidos como indígenas, não recebendo tratamento que leve em conta suas especificidades e causando a separação de familiares, que são realocados para diferentes bairros.

O reassentamento urbano próximo ao rio – uma conquista dos indígenas e pescadores – sequer começou a ser construído, pois a Norte Energia afirma que “não há demanda”. Segundo: duas terras indígenas, Arara da Volta Grande e Paquiçamba, estão localizadas no trecho do rio que vai praticamente secar devido à barragem. Terceiro: reconhecidamente, as próprias medidas mitigatórias da Norte Energia causaram um efeito desastroso nas aldeias da região. Conforme denúncia do Ministério Público Federal, a empresa se converteu em um balcão de negócios diretos com os indígenas, distribuiu voadeiras, carros de luxo e combustível para cooptar lideranças e inundou as aldeias da região com comida industrial e outras bugigangas, o que tem inclusive aumentado os níveis de doenças entre os indígenas.

Casa demolida na rua São Francisco, em Altamira, local previsto para inundação permanente pelo lago de Belo Monte

Categorias de trabalhadores tradicionais da região também são ameaçadas. A mais óbvia delas, a dos pescadores, até hoje não teve o reconhecimento da Norte Energia de que sua atividade foi impactada, apesar dos testemunhos unânimes. Com relação aos oleiros (fabricantes de tijolo artesanal), a empresa reconhece para indenizar apenas os proprietários das olarias, desconsiderando os trabalhadores empregados e os responsáveis pelo transporte dos materiais.

Para os carroceiros, a situação é ainda mais grave, pois sequer são reconhecidos como grupo atingido e não têm nenhum tratamento previsto no Plano Básico Ambiental (PBA) de Belo Monte. A categoria sofre com o aumento do trânsito e a diminuição da procura pelo serviço de frete devido à desarticulação do mercado local. Para a Norte Energia, no entanto, eles são atingidos “pelo progresso”!

Os reassentamentos urbanos também já apresentam inúmeros problemas. Casas apresentam rachaduras e infiltração, não há equipamentos básicos como escolas e postos de saúde (obrigando as crianças a gastarem horas diárias rodando em transportes coletivos pela cidade para estudar), as ruas são escuras e inseguras, o sistema de tratamento de esgoto exala mau cheiro de forma permanente e falta até água para as famílias. Muitas mulheres perderam suas fontes de renda, que dependiam de antigos laços comunitários (eram manicures, cabeleireiras, costureiras e vendedoras de cosméticos) e a empresa nunca as compensou pela interrupção dessas atividades. Para não falar do aumento do índice de violência, tráfico de drogas e prostituição que sempre acompanha a construção de barragens e atinge as mulheres com mais intensidade.

O indicativo de que as ações mitigatórias com relação à construção de uma barragem deveriam, senão melhorar, ao menos manter igual o nível de vida dos atingidos e atingidas, é largamente aceito na oficialidade. No entanto, podemos afirmar sem medo que, de maneira geral, os atingidos não só não melhoraram de vida como em muitos casos pioraram ou ainda vão piorar.

Belo Monte é um caso escandaloso pela sua magnitude, mas não é exceção. Todas as empresas, em todas as regiões, tratam os atingidos como parte dos custos. A hidreletricidade compõe mais de 70% da nossa matriz elétrica e mais de 1 milhão de pessoas já foram atingidas por barragens. Mesmo assim, até hoje ainda não existe uma Política Nacional de Direitos para esse povo, ficando a critério do empreendedor decidir que tratamento dar aos atingidos. Como se costuma dizer, é como pôr a raposa para tomar conta do galinheiro.

A Norte Energia tem pressa, inclusive por estar sujeita a multas milionárias se a Aneel decidir não perdoar seu atraso de mais de um ano no cronograma. A pressão recai sobre os trabalhadores – não à toa, três operários morreram em um acidente no canteiro semana passada e há boatos que muitas mortes ocorrem lá dentro todos os meses e são devidamente abafadas. A pressão também recai sobre os atingidos, que acabam tendo de pagar com seus direitos o preço do “desenvolvimento”. E vai sobrar para o brasileiro pagar, pois são os trabalhadores que vêm sustentando com tarifas cada vez mais abusivas todo o mercado altamente lucrativo da eletricidade no Brasil (que em lucratividade perde somente para os bancos).

Diante da ausência de uma política de direitos, a experiência de mais de 20 anos de existência do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) nos ensina que apenas a organização e a luta dos atingidos têm contribuído para a melhora de vida e o verdadeiro desenvolvimento nas regiões impactadas. Apenas com luta se obtém o reconhecimento como atingidos, reassentamentos dignos e com participação ativa dos atingidos, acesso a políticas públicas, além de meios de reestruturação econômica e cultural. Essa é a lição que queremos compartilhar.

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