Cobrança pelo uso da água

1. Água paga A água pode ser tratada como mercadoria? Será que a ausência do preço da água é o fato gerador do desperdício? Será que legislação punitiva ao seu […]

1. Água paga

A água pode ser tratada como mercadoria? Será que a ausência do preço da água é o fato gerador do desperdício? Será que legislação punitiva ao seu desperdício alterará usos e costumes?

Já restou fartamente comprovado que a obrigação de pagar pelo consumo da água provoca exclusão social e redução a seu acesso. O impacto social de tributos incidentes sobre a água mata! Isto é política irresponsável e homicida porque encorajadora de expansão de doença e de morte. Portanto, deve ser recusada qualquer forma de privatização, de mercantilização e de comercialização baseada no “valor econômico” da água.

Segundo Christian Guy Caubet (1), a única maneira de lidar com o problema é garantir 40 litros de água potável gratuita por pessoa e entregá-los na sua residência. Acima dessa quantia, permite-se a cobrança pela água. “Mas ainda seria necessário declarar que esses 40 litros, definidos pelos peritos da ONU/FAO como quantidade mínima diária, deveriam ser anualmente aumentados, para cada pessoa, sob pena de tornar impossível a meta do desenvolvimento sustentável, noção já proclamada como objetivo universal em 1987, pelo Relatório da Comissão Brundtland, intitulado Nosso futuro comum”, segundo ele.

 

2. Cobrança da água

 

Apesar dos efeitos nefastos, a cobrança pelo uso da água não é novidade: é norma legal, no Brasil, desde a publicação do Código das Águas (2). A Lei Federal 9.433/1997 – Lei das Águas – trouxe os mecanismos para a cobrança; demarcou a área (bacia hidrográfica) que irá pagar; apontou o detentor do poder de decisão sobre os valores e sobre a forma de aplicação (Comitê de Bacia) e o responsável pela aplicação dos recursos arrecadados (Agência de Águas).

Paga-se, atualmente, somente o tratamento e a distribuição da água, embora o artigo primeiro da Lei das Águas declare que “a água é um bem de domínio público; é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”. Não obstante, ela prevê a cobrança da água consumida e apresenta, em seu artigo 19, os objetivos desta: “I – reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II – incentivar a racionalização do uso da água; III – obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos”. E, impõe, em seu artigo 22, a utilização do produto desta cobrança: “I – no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos; II – no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos”.

Há um detalhe do artigo 22 que merece severa vigilância: “Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados…”, que é complementado por seu parágrafo 2º: “Os valores previstos no caput deste artigo poderão ser aplicados a fundo perdido em projetos e obras que alterem, de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e o regime de vazão de um corpo de água”. As palavras escolhidas para compor o artigo podem fulcrar o desvio dos valores arrecadados com a cobrança. Todo o cuidado é pouco, embora a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, tenha garantido que este recurso não sofrerá contingenciamento orçamentário: “O processo de cobrança pelo uso da água em benefício da bacia é uma decisão democrática no âmbito dos conselhos de recursos hídricos e a decisão do governo de que esse dinheiro será utilizado prioritariamente na recuperação da bacia sem sofrer contingenciamento também é uma conquista”(3).

O Comitê de Bacia tem a seu favor, neste caso, as regras constantes da Lei Federal 10.881/2004, que assegura as transferências da ANA – Agência Nacional de Águas – provenientes das receitas da cobrança pelos usos de recursos hídricos arrecadadas na bacia hidrográfica.

 

3. Resolução 48/2005

Em 21 de março de 2005, o CNRH – Conselho Nacional de Recursos Hídricos – aprovou a Resolução 48 que estabelece prioridades para a cobrança pelo uso da água e os critérios de aplicação desses recursos que orientarão o Estado e os Comitês de Bacia Hidrográfica (4) na elaboração das regras de cobrança já que a “viabilidade técnica e econômica da cobrança pelo uso de recursos hídricos exerce papel de fundamental importância na implementação dos Planos de Recursos Hídricos e na indução do usuário aos procedimentos de racionalização, conservação, recuperação e manejo sustentável das bacias hidrográficas”.

Tal resolução ratifica os objetivos da cobrança já apontados na Lei das Águas. O produto da arrecadação financiará parte dos investimentos e garantirá os benefícios advindos dos investimentos realizados, ou seja, a preservação ambiental da bacia, a melhoria da qualidade da água e a garantia da disponibilidade dos recursos no futuro. Em alguns municípios de São Paulo: Campinas, Piracicaba, Amparo, Santa Gertrudes, Pedreira, Holambra e Jaguariúna  já foi implantado o pagamento de R$0,01 por metro cúbico de água (Piracicaba, por exemplo, com 300 mil habitantes, pagará, anualmente, 300 mil reais). A verba será destinada ao Consórcio Piracicaba-Capivari e será utilizada para reverter a degradação dos rios, em saneamento básico e até em barragens que regularizem o fluxo e permitam maior disponibilidade d`água.

A Resolução também prevê, em seu  artigo 9o, que o “usuário poderá solicitar revisão do valor final que lhe foi estabelecido para pagamento pelo uso de recursos hídricos, mediante exposição fundamentada ao respectivo Comitê de Bacia Hidrográfica e, em grau de recurso, ao competente Conselho de Recursos Hídricos”.

 

4. Tipos de cobrança d`água

Assim, temos hoje dois tipos de cobrança pelo uso da água:

– a compulsória, definida em lei e paga pelos usuários de eletricidade de todo o Brasil às geradoras de energia (em 2004, o montante recolhido chegou a R$1 bilhão);

– a “condominial”, instituída a critério dos Comitês de Bacias Hidrográficas e paga pelos usuários de água. A única experiência no Brasil, por enquanto, é a do Comitê da Bacia do Paraíba do Sul, cujo projeto-piloto funciona há dois anos e arrecadou R$10 milhões em 2004. No contexto da gestão de bacias hidrográficas, entende-se que o bem maior não é a água, mas a garantia do seu  abastecimento. O objetivo principal é estimar quanto as pessoas devem pagar para que a disponibilidade de recursos hídricos e a preservação ambiental sejam alcançados.

Importante salientar que a nova taxa não deve ser confundida com a que já pagamos às concessionárias regionais, cujo fato gerador é o serviço de captação, tratamento e distribuição da água. Trata-se de outra taxa condominial, cujo valor e aplicação serão definidos pelos integrantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica e corresponderá, em média, a R$0,02 por metro cúbico de água consumida, o que representará majoração de cerca de 2% nos valores atualmente pagos pelo consumidor. A medida atingirá pessoas físicas e jurídicas mas o maior impacto será experimentado pelas últimas5. “A ameaça que desde já paira sobre essa taxa é não se respeitar escrupulosamente a finalidade para a qual ela foi criada. Todos os recursos provenientes dela terão de passar pelo Tesouro Nacional. ‘É aí que mora o perigo’, adverte Décio Michellis Júnior (6), lembrando a possibilidade de desvio para outras áreas, como aconteceu com a CPMF. Se isso ocorrer, propõe que a resposta dos comitês das bacias hidrográficas seja a suspensão da cobrança da taxa” (7).

Notas:

1 – Professor titular do departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor dos livros Manejo ambiental em bacia hidrográfica, 1992; Terra, Planeta Água, 1992, entre outros.

2 – Decreto-lei número 24.643/1934.

3 – http://www.brasiloeste.com.br/noticia/1435/recursos-hidricos

4 – Os detalhes sobre a tributação serão definidos diretamente pelos Comitês.

5 – Os defensores da cobrança, sob a expressão “Uso Sustentável da Água”, pregam a instituição de tributos mais onerosos aos que a poluem e aplicação desta verba na educação ambiental, como medidas garantidoras do uso sustentável da água.

6 –  Presidente da Câmara Técnica de Cobrança pelo Uso de Recursos Hídricos.

7 – Editorial “Essa taxa é boa”, Jornal da Tarde, 27/03/2005.

Fonte: Adital

 

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